Quem se deixa dominar pelo orgulho perde todas as virtudes que eventualmente possua. Mas ao despretensioso todo o resto lhe será dado por acréscimo.
Em 11 de maio comemora-se a festa de São Francisco de Jerônimo, cuja biografia contém os seguintes dados(1):
São Francisco de Jerônimo nasceu em 17 de dezembro de 1642.
Grande pregador em Nápoles
Tornando-se jesuíta, seu maior desejo era ser missionário nas Índias e Japão, mas Deus o destinou a evangelizar o reino de Nápoles, trabalho ao qual se dedicou de corpo e alma.
Preparou, para auxiliá-lo, uma confraria de artesãos que se chamou Oratório da Missão; além de outros numerosos trabalhos, seus membros todos os domingos acompanhavam São Francisco em suas pregações pelas ruas e praças de Nápoles. Saíam cantando da Igreja de “Gesù Nuovo” e, em procissão, dirigiam-se aos locais mais frequentados.
Ao avistarem a procissão, os elementos de má vida abandonavam, sem cólera, o que estavam fazendo.
Francisco subia, então, a um lugar mais elevado e falava ao povo. Começava descrevendo, com energia, os horríveis efeitos do pecado e os castigos que esperavam o pecador.
Quando o temor estava em todos os corações, ele falava sobre a misericórdia de Deus. Depois dizia aos presentes que faria penitência por si e por eles. Ajoelhava-se ante uma cruz e, com o rosto em lágrimas, flagelava-se com uma disciplina de ferro. Não era preciso mais para o povo segui-lo, cheio de arrependimento.
Grande devoto da Virgem, que frequentemente enviava-lhe os pecadores que desejava se convertessem. Tornou-se famoso o caso de um homem, há muito afastado da Igreja, que Nossa Senhora o protegeu por causa do respeito com que saudava as suas imagens. Apareceu-lhe três vezes, ordenando que procurasse Francisco para se confessar.
São Francisco de Jerônimo morreu em 1716, cantando o “Magnificat” em agradecimento pelas graças que recebera em sua vida.
Meio publicitário de primeira ordem
Essa vida é uma verdadeira beleza! Vê-se como a graça prepara as pessoas de acordo com o ambiente em que elas devem atuar. É uma coisa evidente que este homem, que desejava fazer a pregação na distante China, no distante Japão, tinha todo o necessário para pregar na própria Itália. Ele era italianíssimo e o modo de ele fazer sermões o era também. É o Sul da Itália, todo entusiasmado por música, por cerimônias externas, por procissões, por aparato, gente com a imaginação quente, fértil, ao contrário dos nórdicos.
Vejam como é bem calculado ele sair, pelo Sul da Itália ensolarada, de dentro de uma igreja napolitana, com um grupo de gente cantando e fazendo uma procissão. É muito diferente, por exemplo, de um grupo de ingleses saindo da Catedral de Westminster, cantando e fazendo procissão nas brumas de Londres. Na Itália tudo isso toma outro aspecto, outra poesia.
Este Santo está inventando, portanto, um processo publicitário de primeira ordem para chamar a atenção num lugar onde todo mundo canta: a poética Itália daquele tempo, em que se trabalhava pouco e se vivia muito e melhor.
Imaginem as ruas estreitinhas da Itália daquela época, pelas quais as pessoas, saindo da Igreja do Gesù, caminham cantando hinos sacros. Todo mundo vai ver passar a procissão, até mesmo as pessoas de má vida. Sobe o santo num local mais elevado e começa a falar.
Agudo senso psicológico no agir
E notem o alto senso psicológico no agir: São Francisco entende bem que, para aquele gênero de gente, é preciso começar a falar pelo temor, pois se trata de pessoas embrutecidas, endurecidas no pecado e, no seu atual estado de espírito, incapazes de amor. Então, para descolar o apego desta gente aos bens da Terra, é necessário começar a dizer-lhes que são bens efêmeros, passageiros e, depois, falar das chamas do Inferno, no duro.
Depois de tê-los amedrontado bem e, pelo temor, produzir neles um início de desapego em relação aos bens terrenos, ele passa a falar da misericórdia para dar a esperança dos bens futuros, nutrir o amor de Deus e fazer com que Ele comece a lhes aparecer com a sua face amorosa.
Vemos, assim, o quanto esse caminho, pelo temor para o amor, faz bem. Toda espécie de aventureiro, de mafioso, de sem-vergonha de fundo de bodega, sai e começa a comentar:
— Mas como é esse Inferno? Pega fogo mesmo?! Como é esse fogo?
E ouvem a voz do Santo:
— Morre-se de repente… Cuidado com a morte súbita! Olhai o que aconteceu, no vosso bairro, com a Margherita — porque tem que ser assim, personalizado; para a oratória popular a coisa não pode ficar em teoria —, que morreu enquanto estava pendurando a roupa no varal. Quem haveria de dizer? Agora, eu pergunto: o mesmo não pode suceder com qualquer um dentre vós?
Dirige-se a um ouvinte e pergunta:
— Você não teve já uma tontura?
— Eu já tive.
Outro pensa: “Eu também tive, mas não conto!”
De repente, por essas “coincidências” de que os oradores assim inspirados são capazes, São Francisco diz:
— Você conta que teve! Mas não haverá alguém aqui que não tem coragem de contar que já sofreu alguma tontura?
E aquele que fizera o propósito de não contar, pensa: “Esse homem adivinhou o que está se passando em mim!”
Varão humilde que derrama o próprio sangue
Estando os espíritos assim vacilantes, ele começa então a falar da misericórdia. Mas aí há uma prática em que a justiça e a misericórdia se osculam: depois de falar da misericórdia, São Francisco dá uma prova da necessidade da justiça e uma amostra da imensidade da mesma misericórdia. E ele mesmo vai junto a uma cruz, ajoelha-se e diz: “Este sangue que vou derramar é por vós!” E começa a se flagelar. E vê-se correr o sangue do inocente, enquanto o pecador está embaixo, olhando e refletindo:
“Mas será possível? Eu fugiria na disparada para evitar essa sova, e ele a leva por mim! Que coisa fabulosa!”
E a graça começa a atuar. Não há coisa mais eficaz do que uma dupla graça: a da humildade e a do sangue derramado. Ou seja, ouvir um pregador destes que tem a coragem de falar sem procurar chamar a atenção sobre si, sem ser vaidoso, sem fazer espetáculo; ele está empolgando toda aquela gente, mas pensando abnegadamente na salvação das almas e na causa da Igreja, e não está preocupado nem um pouco consigo. Pelo fato de sentirem que não há nele egoísmo, ele arrasta os outros para abandonarem o seu egoísmo. Ademais, ele leva isso à generosidade de derramar o seu próprio sangue.
Esse fato me traz à memória um dito de Napoleão. Certa vez, quando ele estava no fastígio de sua glória e já pensando em proclamar-se imperador, perguntaram-lhe:
— Por que não te fazes aclamar Deus?
Ele respondeu:
— Porque, depois de Jesus Cristo, só há um meio de ser tomado a sério como Deus. É subir numa cruz e fazer-se crucificar. E ser crucificado eu não quero.
“Christianus alter Christus”(2). São Francisco de Jerônimo não se crucificava, mas para ser tomado a sério ele se flagelava. E no ato de açoitar-se, feito com humildade e desprendimento — porque uma flagelação orgulhosa não conseguiria coisa alguma —, ele levava as almas atrás de si.
Vemos, então, qual é o resultado dessas missões, o lindo fecho dessa biografia: um pecador a quem Nossa Senhora aparecia, recomendando que o fosse procurar. Um homem que, apesar desse sucesso estrondoso, se conserva inteiramente humilde e abnegado até o fim de sua vida, e que morre num ato de humildade, atribuindo tudo à Santíssima Virgem, como devia atribuir — porque, como diz São Paulo, cada um de nós é um servo inútil —, e cantando o “Magnificat” para agradecer os dons de que ele fora objeto.
A morte deste Santo é uma das mais belas que pode haver: morrer entoando o cântico com que Nossa Senhora agradeceu os dons que Ela mesma recebeu de Deus! Uma vida cheia e que proclamava, humilde e alegremente, sua própria plenitude no momento do seu ocaso. Sem dúvida, é uma vida que mereceria que uma pessoa fizesse um poema a respeito dela.
A tentação de vaidade
Alguém poderia dizer-me:
“Doutor Plinio, o senhor não está engrandecendo um pouco demais o personagem? O senhor se refere a ele como se fosse um homem que tivesse calcado aos pés todos os louros do mundo, quando ele, afinal de contas, era um modesto pregador popular. O que era isto em comparação com um grande orador acadêmico?”
E eu respondo: uma das coisas mais difíceis é o indivíduo resistir ao apelo da demagogia, à sedução desse contato vivo com a multidão e a essa sensação de estar conduzindo as almas porque está guiando o povo. Essa é a tentação de vanglória mais difícil de ser vencida, debaixo de muitos pontos de vista, do que a de vaidade de quem está falando para um grande auditório frio, que ouve tudo com senso crítico e, depois, aplaude batendo com as pontas dos dedos na palma da mão.
Imaginem alguém convidado para falar na Academia Francesa de Letras — um dos mais altos cenáculos literários do mundo —, e vendo as fisionomias daqueles franceses críticos, ouvindo sua palestra. Terminada a exposição, dizem simplesmente: “Oh, bien…” O que é isto em comparação com um homem que vai carregado pelo povo que o aclama com “vivas” etc.? Aquele turbilhão do entusiasmo popular e “populacheiro” que inebria mais, assim como um determinado gênero de vinho popular embriaga mais do que a “champagne”. É uma magnífica amostra do que pode um homem, como vitória contra as formas fáceis de popularidade, perseverando na humildade e, por isso mesmo, levando as almas a Nossa Senhora.
Lembro-me de ter lido o seguinte episódio na biografia de São Vicente Ferrer, que talvez tenha sido o maior missionário de todos os tempos, depois de São Paulo. Quando fazia missões de cidade em cidade, o povo de uma localidade ia acompanhando-o a pé pelo caminho, e a população da outra vinha ao encontro dele e o conduzia, debaixo de um pálio, para a cidade seguinte onde ele deveria pregar. Quando o santo pregador entrava, era como um soberano que estivesse chegando: todos os sinos tocavam. E, naquele tempo, o sino era o máximo da consagração; era como a televisão de hoje.
No meio de toda aquela popularidade, enquanto ele entrava em Barcelona, onde lhe haviam preparado uma consagração apoteótica, alguém se aproximou dele e perguntou: “Irmão Vicente, não vos sentis vaidoso?”
Ele deu a resposta do homem humilde: “A vaidade esvoaça do lado de fora de mim, mas não entra”.
Quer dizer, “eu sinto a tentação da vaidade, mas não consinto”. Vejam que beleza são essas coisas, que fazem de um pequeno detalhe da vida de um Santo uma verdadeira maravilha.
A despretensão
Que isso nos toque e nos sirva de exemplo. O que eu mais desejo para mim e para cada um de nós é a despretensão. Não nos preocuparmos com o que estão pensando de nós, em fazer bonito papel diante dos outros, mas sermos indiferentes aos aplausos ou às vaias. E sabermos calmamente tocar o nosso caminho, executando aquilo que Nossa Senhora quer de nós, compreendendo que, para Deus, todo homem é pecador, tem defeitos, e as virtudes que ele possa ter lhe vêm de Deus Nosso Senhor, porque não saem de sua natureza contaminada pelo pecado original; portanto, pelos rogos de Maria, tudo deve ser agradecido ao Criador.
Aliás, é preciso dizer, ser vaiado por levar o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo a um ambiente hostil é uma bem-aventurança, pois significa sofrer perseguição por amor à justiça. Indica um belo grau de humildade o conservar-se despretensioso num ambiente onde há simpatia para conosco, porém é mais difícil, ao ser vaiado, manter-se humilde, mas sobranceiro.
Eu os convido, portanto, a praticarmos juntos, nesses seus dois aspectos, a virtude da humildade, enfrentando com sobranceria a vaia e preparando as nossas almas para dominar o contínuo apetite de sermos bem-vistos e louvados pelos outros, e de, veladamente ou não, nos julgarmos superiores em relação aos demais.
Que Nossa Senhora nos conceda essa despretensão e eu lhes garanto que todo o resto lhes será dado por acréscimo.
(Extraído de conferência de 10/5/1968)
1) Não dispomos dos dados bibliográficos da ficha utilizada nesta conferência.
2) Do latim: O cristão é outro Cristo.