A História: um imenso drama

Ao longo dos milênios em que o homem peregrina sobre a terra, incontáveis foram os disparates e os lances de selvageria ou torpeza, praticados por gente comum ou por personagens altamente colocados. Será que, no ensino da História, é proveitoso para os alunos apresentar-lhes esses episódios sinistros da vida da humanidade, muitos deles passados em eras remotas? Questão um tanto  inesperada, e relacionada com estas outras: de que  adianta estudar História? De que vale conhecer o passado? As respostas são dadas por Dr. Plinio na conferência que transcrevemos nas páginas seguintes.

 

Conjecturar o futuro não é tarefa das mais fáceis. Para fazê-lo, importa arquitetar uma série de raciocínios, de cálculos, etc., até se vislumbrar algo do que ele nos reserva. Em certas circunstâncias, esse conhecimento é de extrema utilidade, dado podermos adequar nossos objetivos e ações em vista do que irá acontecer.

Mais ainda. Sabendo como outros planejaram o futuro, estará a nosso alcance “desplanejá-lo”, caso tenhamos intenções contrárias às deles. Tome-se o exemplo de dois rivais políticos. Na disputa que travam, vencerá aquele que melhor compreender quais os desejos do adversário, os lances, manobras e combinações que este realizará amanhã, pois, conhecendo- os de antemão, poderá  tomar a dianteira e sair vitorioso.

Um modo especial de jogar xadrez

O mesmo princípio se aplica a dois jogadores de xadrez que se olham de frente. Se um é capaz de perceber qual será a próxima jogada de seu contendor, pode mexer  determinada peça e ganhar a partida. Vem a propósito evocar de passagem uma reminiscência do meu tempo de moço. Um tio meu, muito apreciador do jogo de xadrez, gostava de aproveitar as tardes livres dos fins de  semana para uma partida com seus filhos ou sobrinhos. Diversas vezes era eu o escolhido e de bom grado assumia o outro lado do tabuleiro.

Em determinado momento, eu percebia que meu tio fazia seus planos olhando para as peças, procurando descobrir as minhas intenções. Eu, porém, procedia de modo diferente: enquanto meu  oponente observava as peças, eu lhe fitava o rosto e o olhar, acabando por descobrir qual seu próximo lance. Empurrava, então, um cavalo, uma torre, bloqueando-lhe o caminho, sem ele nunca  haver atinado com minha estratégia…

Era uma maneira de conhecer o futuro, que também tinha, naquele âmbito familiar e recreativo, a sua utilidade.

A história dos assírios: “O que eu lucrei em saber dessas selvagerias?”

Mas, quando  e trata de História, de nos voltarmos para o passado, retrocedendo até os primórdios da humanidade, que proveito nos advém desse conhecimento?

Eu me situo novamente na minha sala de aula, no tempo do Colégio São Luís, quando o professor de História entrava, sentava-se à sua mesa e dizia: “Hoje vamos estudar os assírios!” O tema me despertava um interesse apenas moderado.

Porque, afinal, em pleno século XX, com os assírios ou sem eles, as coisas mais ou menos se resolvem. Eu pensava comigo: “O que me importam esses reis, aliás muito antipáticos?”

De fato, uma antipatia que me ficou da consideração de uma gravura existente no meu livro de História Universal, reproduzindo um alto-relevo da época assíria. A cena esculpida era  confrangedora. Tratava-se de um rei tomando atitude de vencedor diante de prisioneiros de guerra. Ele, representado como um homem alto, usando chapéu cônico (mas um cone truncado, não  em ponta) de material muito rico, sob o qual escachoavam abundantes cabelos, eximiamente frisados, formando filas, como se diria de soldados em ordem de batalha.

A barba, igualmente farta, alternava-se em segmentos lisos e cacheados. Estava vestido de túnica e calçava sandálias. Uma fisionomia de expressão feroz, certos olhos compridos e em diagonal,  característicos daqueles povos, nariz adunco de ave de rapina, e uma lança na mão.

À frente dele, lavrados em tamanho menor, uma série de prisioneiros, cada um com argolas atravessando o seu lábio inferior, e todas essas argolas presas por cordéis que chegavam até a mão do  rei vitorioso. A cena perpetua o momento em que dois daqueles infelizes estão ajoelhados diante do soberano, e este na iminência de lhes furar os olhos com a lança. Terrível castigo que ele  infligiria às centenas de vencidos, para se vingar e, posteriormente, ter braços que trabalhassem para ele  sem lhe causar grandes estorvos. Estão cegos, não podem fugir, fazem o que se lhes manda.

Transformam-se em animais de tração. Era costume dos assírios fazer grandes obras públicas, muros muito altos, etc., e necessitavam de homens que construíssem pacientemente essas imensas  edificações. Ora, como tais empregados provinham, em geral, das prisões de guerra, era preciso destinar inúmeros soldados para vigiá-los e impedir que desertassem. Então aquele rei — a quem a  legenda da gravura dava o nome de Assurbanipal Tiglapilazar — teve a horrível ideia de cegar todos os prisioneiros, de modo a não poderem escapar. Nessas condições, um único guarda bastava para tomar conta de quinhentos ou mais escravos.

Quando a faina diária terminava, os desgraçados eram levados para um cocho qualquer, recebiam uma péssima refeição e dormiam, para tudo recomeçar na manhã seguinte.

Uma situação pavorosa, abominável, fruto da civilização pagã, alheia à noção de que, embora desiguais entre si, os homens são iguais pela natureza. E que, portanto, essa desigualdade tem limites,  ão sendo lícito a um homem abusar de seu semelhante.

Então, eu pensava com meus botões: “Valeu a pena essa visão de pesadelo e drama passar por meus olhos e minha mente, como pelos de todos os alunos que estão aqui? O que eu lucrei em saber  dessa selvageria e torpeza? Não lucrei nada. É uma coisa horrorosa! Para que ensinam isso?”

Desatinos de certos personagens históricos

Se não eram assírios, eram os babilônios, era a Índia, e era a luta dos persas contra os gregos, envolvendo uma série de fatos, alguns inexplicáveis. Dario, imperador da Pérsia, homem de imenso  poder, levou suas tropas até as margens do Mediterrâneo, numa caminhada que se tornou célebre, porque muito difícil. De fato, a grande distância que separa a Pérsia desse mar não podia,  naquele tempo, ser vencida pelo exército inteiro montado a cavalo. Tinha-se de ir a pé, sobrepujando inúmeros obstáculos.

Chegados ao Mediterrâneo, os persas encontrariam ali uma poderosa frota que os aguardava para conduzi-los à Grécia. Porém, quando já se dispunham a embarcar nos navios, um vento fortíssimo  soprou, encapelando as ondas e dispersando toda a frota. Assim, a pequena Grécia, com poucos soldados para se defender contra a Pérsia, viu-se livre da invasão.

Diante do fracasso, Dario ficou furioso e ordenou que um certo número de chicoteadores do seu exército açoitassem o mar, para se vingar do que este havia feito com suas naus.

Eu pensava: “Aqui é outro desatino! Do que adianta chicotear o mar? O mar vai e vem, quando quiser, sobe, inunda o lugar onde estão todos os chicoteadores, leva alguns consigo e os mata. O mar  az o que quiser. De que adianta flagelá-lo? É uma estupidez!” Mas era preciso aprender que Dario mandou chicotear o mar… O que lucrei com isso?

Tudo se explica em função de Nosso Senhor Jesus Cristo

Certo dia caiu-me nas mãos um livro de História, de cujo título não me lembro, que infelizmente já desapareceu de circulação. Era uma verdadeiro tesouro e uma maravilha de erudição. Baseado  em textos de autores pagãos, mostrava o mundo de tolices, asneiras e crimes que se cometiam antes de ser difundida a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo pela face da Terra, e como aqueles  cessaram depois dessa propagação.

De súbito, aquelas velhas histórias do meu professor secundário tomaram vida para mim: “Ah! Agora eu compreendo. Quando penso em Nosso Senhor Jesus Cristo e no Tiglapilazar… Quando  considero a suavidade e a doçura dEle ao curar cegos, coxos e doentes de toda ordem, com infinita bondade, e, de outro lado, vejo a ferocidade desse rei animalesco, e imagino que todos daquela  época eram como esse soberano, eu entendo que essas crueldades sem nome foram se apagando lentamente, à medida que os ensinamentos de Nosso Senhor  se propagaram pelo mundo e dulcificaram os povos.”

Ao ver que dessas populações dulcificadas floresceu a Cristandade, eu pensava: “Estou  compreendendo a História, ao ver nela os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, os passos da Igreja dEle! É  por causa da doutrina que Ele trouxe aos homens, da Igreja que Ele fundou, da graça que essa Igreja difunde, e que Ele mesmo diretamente esparge sobre as almas, a rogos de Nossa Senhora, a  todo momento e de todos os modos — que se formou essa realidade incomparável chamada Cristandade, a imensa família das nações católicas apostólicas romanas”!

“Que papel admirável teve Ele na História! Como Ele é grande! Que maravilha!”

A História, ao girar em torno do Verbo Encarnado, tomou sentido para mim. Ela deve ser vista, portanto, enquanto ordenada em relação a Nosso Senhor: a narração de todos aqueles crimes,  infâmias e ignomínias que O precederam, que Ele viria remir; como também a descrição de todos os restos de belo, bom e verdadeiro que ainda subsistiam na natureza humana, e que Ele iria  tomar, elevar e conduzir à sua excelência. O bem, antes dEle minoritário, incompleto, esmagado, com Ele sairia vitorioso.

Em função de Jesus Cristo, tudo toma interesse. Sem a presença dEle, a História se parece com uma sala durante a noite. Esta pode estar decorada com os mais belos quadros do mundo; se, porém, estiver imersa numa escuridão absoluta, do que me adianta estarem ali as mais célebres obras-primas da Terra? Eu não as vejo! Alguém poderá me dizer: “Ali está um Fra Angelico  magnífico!” A minha resposta é: “O que tenho eu com isso? Não estou vendo! Não me interessa!”

Contudo, acende-se a luz… “Ah! Que esplêndido quadro de Fra Angelico!” É a reação normal, porque eu passo a ver as coisas e elas tomam interesse para mim.

É o que acontece quando estudamos a História em ordem a Nosso Senhor Jesus Cristo. Com a presença dEle, a luz brilha nas trevas, tem-se vontade de acompanhar os fatos, de entendê-los, etc., em função dEle, que é não apenas o centro, mas o ápice da História.

O sentido profundo da História: uma luta, um imenso drama

Vista assim, a História se divide em três grandes períodos: o primeiro, da criação do homem, passando pelo pecado original, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo; o segundo, quando Ele  nasceu e morreu na cruz por nós, resgatou o gênero humano e fundou a Igreja; terceiro, os séculos que antecedem a outra vinda dEle, no fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos,  encerrando a História da humanidade.

É tomada nesse amplo contexto, relacionada não apenas com um povo ou uma civilização, mas com a globalidade do gênero humano, que a História adquire o seu sentido profundo e merece ser  examinada. Um sentido profundo que remonta a Deus Criador, tirando do nada o universo, com todas as suas incomensuráveis riquezas, os anjos, e a síntese da matéria e do espírito que é o  homem, posto por Ele no Paraíso Terrestre, lugar de delícias e de extraordinária felicidade física, espiritual e intelectual.

Se não tivesse havido o pecado original e, portanto, o gênero humano continuasse a se propagar no Paraíso, este, com o contínuo e magnífico crescimento da virtude, inspirando os mais variados e  excelentes talentos, teria se tornado resplandecente de glória e beleza. Desse modo, o homem prestaria sua colaboração para deixar ainda mais esplendorosa a obra de Deus. E assim o foi de início,  quando — diz a Escritura — às tardes o Senhor descia ao Éden numa brisa fresca, para passear e conversar com Adão, fazendo com que este compreendesse e aperfeiçoasse a beleza de  todas as coisas.

Porém, essa ordem e esse plano maravilhoso foram frustrados pelo Pecado Original. Adão e Eva caíram, e foram expulsos do Paraíso. Punidos, iniciam nesta Terra de exílio a sua vida difícil.  Nascem os primeiros filhos. Um deles é a flor da progênie: Abel. Abel o suave, Abel o bom, Abel o perfeito.

O outro, Caim, é um filho torto, que vê com maus olhos o irmão virtuoso, em relação ao qual se consome de inveja e de vontade de liquidar. Os pais notam a perversidade no íntimo da alma de  Caim e procuram aconselhar: “Abel é seu irmão, você precisa amá-lo”.

Debalde. Cedendo à tentação, Caim mata Abel. E aí, presumivelmente, pela primeira vez Adão e Eva viram uma criatura morta, e puderam contemplar em todo o horror — na pessoa de seu filho —  morte que viria para eles e para todos os seus descendentes, por culpa deles.

Podemos imaginar a atitude de Eva, sentada sobre uma pedra, com Abel em seu colo, sem vida. Ela segurando a cabeça de seu filho dileto, enquanto, ao longe, Caim se afasta gritando ultrajes!… Ela tinha ali a figura do primeiro assassinato, do primeiro morto e do primeiro bandido. É a História do gênero humano que vai começando.

Passam-se os séculos. Os “Nabucodonosores”, os “Assurbanipais” aparecem. Os reis também vão se tornando celerados. Tudo vai se tornando crime pelo mundo. Mas, em Israel, no povo eleito, uma  Virgem imaculada havia, a qual, ao lado de alguns poucos justos, insistentemente rogava a Deus a vinda do Messias. “Rorate coeli desuper, et nubes pluant justum” — reza a Igreja no Advento. 

“Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho; e as nuvens chovam ao Justo”. Quer dizer, que venha o Bem-amado e o Bem-esperado de todas as gentes.

O Perfeito surgiu, afinal, para modificar o curso do mundo. Durante séculos O esperou a nação de Israel. Eis que o Redentor chegou. O que fez esta nação? Matou- O! Uma minoria fiel O  acompanhou e constituiu a Igreja. A maioria, infiel, sacrificou o Verbo Encarnado! Mas não sabiam que o Salvador, com sua morte, resgatava o gênero humano! O pecado original e todos os pecados atuais, até o fim do mundo, necessitavam de uma expiação condigna diante do Altíssimo. Esta, o Homem-Deus a satisfez inteiramente.

Redimido o homem, perdoado, pelo mundo começam a soprar outros ventos. Aparecem os santos, os mártires, e as obras de caridade de toda ordem. Em determinado momento, surgem os  eremitas e os doutores da Igreja, gerados do sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Iniciou-se, igualmente, a grande batalha da Cruz através dos séculos. Assim como no Céu, Deus se serviu de São Miguel Arcanjo e dos Anjos bons para de lá expulsar os demônios, assim também,  na Terra, é desejo de Nosso Senhor que os homens bons combatam os maus, numa luta que perdurará até o fim do mundo. Temos, então, de um lado, a história da graça divina, que vai soprando  aqui, lá e acolá, para tal pai de família, para esta e aquela pessoa, etc., a fim de serem melhores que os outros, para chamá-los e guiá-los. A história do Santo Sacrifício da Missa que se repete  diariamente no mundo inteiro, da Igreja que vai distribuindo os Sacramentos, vai ensinando, governando e santificando os homens, no intuito de que todos alcancem o Céu. É a tarefa por  excelência da Hierarquia sagrada. E dos fiéis, sob as ordens da Hierarquia, travando essa batalha com vistas a levar para a bem-aventurança eterna o maior número de almas.

Essa é a história da  salvação

De outro lado, é a história dos maus, que constituem organizações, que tramam entre si e promovem propagandas para arrastar as almas ao inferno. E o grande, o verdadeiro sentido da vida  cotidiana, não é saber se tal povo irá conquistar tal outro, ou se o preço do petróleo vai subir ou cair. Essas são coisas completamente acidentais. O problema é: eles estão se salvando ou se  perdendo? Nós estamos nos salvando ou nos perdendo?

Quando saímos à rua e observamos o fluxo contínuo de pessoas a pé ou de carro, a pergunta que devemos nos fazer não é: Para onde vão? Qual é a marca do automóvel de cada uma delas? Tudo  isto é secundário. A questão é: elas são ou não de Deus? Estão ajudando o bem ou o mal?

Este é o sentido mais profundo da História da humanidade. Toda ela é uma luta pela salvação ou perdição de muitos, uma batalha em que uns homens influenciam outros, aproximando-os ou os  afastando de Nosso Senhor Jesus Cristo. E compreendemos que, assim, ela deixa de ser o formigamento de um sem número de pessoas que nem conhecemos, que morreram muitos séculos antes  de nós, que não tinham nada a ver conosco, e se transforma na história de um imenso drama.

E nós podemos compô-la como um quadro gigantesco, onde percebemos nossas próprias pessoas dentro do drama. Porque todos nós, cada homem nascido em um determinado século, faz parte  do drama da sua época, e tem um inalienável papel — disposto pela Providência — a desempenhar na ingente luta pela salvação das almas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 11 (Fevereiro de 1999)

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