Depois de Zurbaran e do Beato Fra Angélico, o pintor cujas obras mais me impressionaram foi Claude Lorrain. Artista do século XVII, seu estilo é diáfano, encantador, que revela uma habilidade única de reproduzir em suas telas aquilo sem o que – no dizer de um poeta francês – as coisas não seriam senão o que elas são: a luz do sol.
Lorrain é o pintor do sol. Seus quadros são fantasias em torno do astro diurno, que ele se compraz em representar na sua beleza plena, esplendorosa e régia, projetando a feeria dessa luz sobre naturezas e cenários os quais, sob a ação dela, parecem se transformar em imensas e suntuosas cortes.
Em geral, os temas de suas pinturas são frutos de uma privilegiada imaginação, misturando-se neles elementos antagônicos e quase se diria contraditórios. Por exemplo, um porto em que as águas do mar penetram por um lado da cidade e formam uma espécie de enorme laguna, cercada de magníficos palácios, que ombreiam com ruínas de construções romanas. As ondas banham prestigiosas escadarias de mármores policromados, ou investem contra uma torre medieval que está posta naquele panorama como a proa de um navio apontada para o amplo oceano.
Nesse porto estão ancoradas várias embarcações, grandes e pequenas, a bordo das quais se vêem camponeses tocando e dançando uma tarantela. São pessoas do fundo do país, de regiões onde não há mar, e que ele coloca ali, em tombadilhos enfeitados, junto a marinheiros e estivadores que desembarcam mercadorias.
Tudo isso é irreal, imaginário, e chega a ser inconciliável: escadas de mármore banhadas pela água do mar (que corrói essa pedra facilmente), ruínas romanas ao lado de torres medievais, próximas a palácios clássicos, camponeses fazendo festas a bordo de navios, personagens bíblicos ao lado de homens do século XVII… Ele toma esses elementos díspares e pinta quadros de realidades que nunca existiram.
Pergunta-se, então, qual o mérito dessa concepção artística. A resposta, a meu ver, é que tudo isto convém ao pintor para iluminar por um certo tipo de luz de sol, também ela mirífica e transcendente da realidade.
Ele cria coisas em ordem a um sol igualmente criado pelo seu talento. Ao término de uma fabulosa tela, Claude Lorrain terá composto uma situação natural que ele gostaria muito fosse verdade, e cuja existência encheria a sua alma. Não se trata, pois, de uma pura fantasia, mas de uma criação. Ele gerou tudo aquilo para formar um mundo dourado e irreal, que atrai profundamente o senso artístico de incontáveis pessoas apreciadoras da arte pictórica.
Algum espírito menos afeito a idealizações poderia objetar contra o valor e a admira ação que se tributam aos quadros de Lorrain, porque não se deve gostar do que é imaginário. E nas pinturas dele tudo incluindo a própria luz do sol, “sans lequel les choses ne seraient que ce quelles sont” é imaginário e, por conseguinte, anorgânico.
Esta é uma objeção perfeitamente estúpida, porque faz parte da organicidade do homem ter uma certa saudade do Paraíso, perdido após o pecado de nossos primeiros pais. E ter, portanto, uma necessidade equilibrada, sem descabelamentos, de imaginar coisas que ele sabe não existirem nesta terra de exílio, mas que podiam ter existido no Éden, e que poderão existir no Paraíso Celeste.
Assim, longe de merecerem nosso desprezo, os quadros de Claude Lorrain são quase uma pré-visão do Céu Empíreo.
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Há, todavia, nas telas de Lorrain uma simbologia de algo ainda mais elevado. Quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos perceber que sua especialidade é pintar muros velhos, leprosos, escalavrados, que perderam pedaços de reboco e os tijolos se tornaram aparentes, sobre os quais, porém, bate um sol magnífico. E o muro, feíssimo, fica agradável de ver e contemplar.
Aqueles fabulosos raios solares, ao conferir à parede derruída algo do esplendor e da vida deles, fazem com que ela se torne linda, realçam-lhe o valor, o significado e o ideal.
Quer dizer, o muro alquebrado, que enfrentou tempestades, suportou vilipêndios, aguentou terremotos e continua sempre de pé, sob a ação de um luz feérica, adquire um ar de velho granadeiro da guarda que lutou em todas as batalhas, e agora serve como sentinela do lado de fora do palácio real, e cuja beleza consiste em ter sido surrado pelos acontecimentos e ter resistido. É o herói de todas as intempéries e de todos os combates. Tornou-se um homem feio, enrugado, o bigode branco manchado de tabaco, a face e o corpo marcados de cicatrizes. É rude e pouco educado. Porém, ao vê-lo… prestamos-lhe continência.
Reverenciamos o sol de seu passado, de suas dores e de seus sofrimentos, que incide sobre ele, leva-nos a interpretá-lo, e arranca de nossos lábios a exclamação: Que maravilha!
Do fundo do muro emerge então, pelo toque do sol de Lorrain, o que já não aparecia, mas nele estava, e que é o arqui ele. Ora, assim é também a ação da graça divina. Ela é, digamos, a tinta celestial que Nosso Senhor utiliza, como se fosse um infinito Claude Lorrain da criação. O genial talento do pintor francês não foi senão pálida e pequena representação das perfeições incomensuráveis de Deus no que diz respeito a esta forma de talento.
Visto à luz da graça concedida por Deus, tudo o que é árido e difícil se torna belo. A perda desse modo de ver as coisas pode ocorrer por culpa nossa, porque cedemos aos nossos egoísmos, caprichos e manias.
Ou por decisão de Deus que, nos seus insondáveis desígnios, deseja nos provar: depois de nos cumular com seus dons, de nos favorecer com maravilhosas situações à la pintura de Claude Lorrain, permite que tudo se apague de repente.
Agindo assim, Nosso Senhor como que nos pergunta: Meu filho, considerando a formosura da graça, tu, por assim dizer, me viste e compreendeste o que é a maravilha das coisas. Agora Eu vou te provar. Sabes me ser fiel nas horas em que Eu não te visito pela graça sensível?”
Nas horas em que anoitece, tu continuas a crer no sol? Ou és daqueles que pensam ter-se tornado cegos porque escureceu? Ou seja, porque há aridez, tu pensas que as consolações não voltarão jamais? Quero conhecer tuas disposições, para saber se tu me és grato. Se o fores, dir-me-ás: Nas sombras da morte, Senhor, acreditarei em Vós como se estivesse na plenitude da vida, porque sei que é verdade tudo o que vi antes da escuridão.
Saibamos ter esse reconhecimento para com o Sol da Justiça, cujos raios são graças sob cuja ação o que é feio e velho torna-se belo e admirável.
Compreendamos que, assim como nos quadros de Claude Lorrain não é ilusão o aspecto fabuloso que o muro derruído assume sob a luz de um sol magnífico que lhe penetra na superfície e faz reviver a grandeza dos primeiros dias, assim também nesta nossa vida mortal não são ilusões as coisas sobre as quais incidem as cintilações da graça divina, que nos faz ver tudo o que elas têm de ensolarável, de maravilhoso e de arqui-verdadeiro.
Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 22 – Janeiro de 2000