Cintilações da alma franciscana

Em diversas regiões da velha Europa cristã, há lugares que ainda conservam uma certa unção, ligada à própria natureza deles, não só porque Deus assim o dispôs, mas também porque foram “sobrenaturalizados” pela santidade de homens que ali viveram. É exemplo paradigmático disto a cidade de Assis, marcada para todo o sempre pela extraordinária virtude do santo Fundador dos franciscanos.

Ao peregrinarmos por aquelas paragens que conheceram a prodigiosa alma do “Poverello”, logo o imaginamos passeando pelos lindos e pitorescos arredores de Assis, analisando tudo e fazendo altas considerações que o uniam ainda mais ao Criador. Então se encantava com uma pequena flor, com as ervinhas a crescerem nos sopés das colinas, ou com o “irmão sol” num lindo crepúsculo, etc., elevando-se na contemplação, no conhecimento e no amor de Deus com uma plenitude incomparável.

Essa comunicação especial que São Francisco tinha com Nosso Senhor produzia, por sua vez, uma forma de circulação de sobre- natural por aqueles lugares, envolvendo e conferindo a tu- do algo da própria perfeição espiritual do santo.

Em Assis, ainda se pode degustar algo que só a autêntica piedade católica é capaz de engendrar, isto é, a harmonia de sentimentos opostos. Ali se experimenta um pouco da bondade e da doçura franciscanas, ao lado da austeridade e da combatividade de um varão que era entusiasta das Cruzadas. Sente-se a felicidade extraordinária de um dos santos mais alegres da história cristã e, ao mesmo tempo, o signo de uma tristeza digna, composta, senhora de si, que é o reflexo da dor de São Francisco pela morte do Filho de Deus. Tem-se a imponência das construções da monumental basílica, ao lado do espírito de humildade e desapego das coisas terrenas levadas ao último ponto no “Êremo delle Carceri”. Assim como a pureza estava para São Luís Gonzaga, estava a pobreza para São Francisco. A “dama pobreza”, como dizia, a qual ele misticamente desposara.

Eis uma das grandes maravilhas a serem admiradas em Assis: extremos opostos que nascem dos troncos benditos da Igreja, que não entram em conflito, mas se equilibram de forma prodigiosa, manifestando, pelos fulgores da alma de um santo, algumas das infinitas perfeições do Criador.

Plinio Corrêa de Oliveira

Conversa e amor ao próximo

Tema inesgotável nas exposições de Dr. Plinio, a arte da conversa, a “causerie” informal, era para ele importante forma de transmissão de conhecimentos, baseado num intercâmbio rico e espiritualizado no qual se procura antes fazer bem ao próximo do que transmitir-lhe ensinamentos “livrescos” e cartesianos. Vejamos como ele desenvolve essa matéria que lhe era tão cara.

 

A  respeito do tema “conversa”, como de tantos outros, fui favorecido pela influência de mamãe, pois ela era, fundamentalmente, uma “causeuse”(1).

Mais que palavras, a conversa por olhares e gestos

Um de seus maiores prazeres na vida era conversar. Fazia-o bem, longamente, sem pressa, com um charme envolvente, o qual não é fácil definir, pois tinha mais relação com seus pensamentos do que com seus ditos. Tratava-se do “arrière fond”(2) implícito de sua conversação. Ela não tinha o hábito — aliás, inexistente em sua época — de espremer seu raciocínio até sair o último suco por meio da explicitação. O espremer não fica bem a uma dona de casa: refeições, horários, tudo contado e corrido aguça nos convidados dela a vontade de se retirarem. Creio ser mais interessante o calmo estilo antigo.

E na alma de mamãe havia inúmeros aspectos pelos quais ela conversava muito mais pelo olhar, timbre de voz, gestos das mãos, do que propriamente pelo sentido das palavras.

Um paralelo com o contemplar as estrelas

A esse propósito, tomo a liberdade de fazer uma comparação que, nos lábios de um filho, pode parecer excessiva, entretanto é a única que encontro para exprimir minha ideia.

Quando criança, às vezes eu ficava sozinho, à noite, contemplando o céu estrelado. Como muitos, tinha a sensação de que a abóbada celeste não era inteiramente fixa, mas sim como um grande toldo circular, dilatando-se ou se encolhendo de modo suave. E que esse movimento comunicava um certo impulso de fole àqueles astros, os quais por isso cintilavam. Tomava-me a impressão de que as estrelas de certo modo dialogavam comigo, e, quando mudavam de posição, olhavam-me em silêncio.

Eu sabia que isso não tinha fundamento, e dizia a mim mesmo: “É verdade, mas não pode ser mera ilusão, deve haver algo de real nisso”. Somente depois de homem feito consegui explicitar o que eu sentia. Deus criou o firmamento de maneira a causar essa impressão nas pessoas. E embora não seja a autora desse movimento, a abóbada celeste o é dessa sensação. Esta tem como origem remota e suprema a Deus Nosso Senhor, Criador do céu.

Esse pensamento me parece elevado e belo, porque exprime o valor metafísico dessa sensação que nos colhe ao contemplarmos uma noite estrelada.

Ora, de modo análogo ao que ocorria comigo ao considerar o firmamento, quando conversava com mamãe, muitas vezes tinha a impressão de estar dialogando com duas estrelas (os seus olhos), as quais pulsavam e fitavam-me, dizendo coisas sem relação imediata com os assuntos por nós tratados. E eu sentia que lhe respondia também dessa forma, e assim conversamos durante quase 60 anos, até a morte dela. Esse foi o contributo que ela me proporcionou para compreender a riqueza da conversa.

“Não há arte de viver sem a arte de conversar”

E ainda menino, através das revistas da “Université des Annales”, bem como de livros de história franceses, etc., não custei a perceber essa realidade: as pessoas que sabiam conversar possuíam uma imensa vantagem na vida. Não há arte de viver sem a arte de conversar. Pois normalmente os homens não vivem sozinhos, mas em sociedade, devendo, portanto, trocar idéias e comentários. E o efeito que se produz nos outros depende em grande parte do que se diz.

Imaginemos uma pessoa contando a um conhecido o passeio que fez. Se ela seguir as normas da conversa, conforme expusemos, será ouvida com atenção e interesse. Porém, se narrar à maneira de um professor de química, que explica a reação produzida pela mistura de H2O com outra substância, fará um relatório extenuante e não uma autêntica descrição. Por mais que tal relato seja profundo, é inaceitável como elemento de convívio humano.

Certas revistas geográficas apresentam reportagens escritas por pessoas que passeiam sozinhas na natureza e contam o que vêem, sem nenhuma pulsação ou calor de alma. Ela fala, por exemplo, das borboletas do Ceilão ou das lagostas do Recife com a mesma neutralidade de um guia.

Um intercâmbio de duas personalidades

Ora, a conversa não pode ser assim. Sendo um meio insubstituível para viver, pensar, a conversa não é uma mera crônica, um simples relatório. Sobretudo, não é uma aula.

Entretanto, a “causerie” deve ter algo de crônica, de relatório e de aula. É, aliás, o que procuro fazer nesta exposição. Ela tem um aspecto docente, pois estou continuamente ensinando coisas. Mas difere de uma aula clássica, a qual pode ser comparada a uma avenida em cujo ponto terminal há um monólito chamado ensinamento. Enquanto que minha explanação é como um passeio por caminhos não retilíneos onde, de forma inesperada, encontra-se uma lição.

Nela há também algo de relatório, quando faço um inventário dos modos de se conversar. Além disso, em minha exposição existe um pouco de conversa. Embora nesse momento esteja agindo especificamente como um professor que fez a introdução e focalizou o tema, sem perceberem, meus ouvintes estão conversando comigo e assistindo uma aula. Isso é propriamente “causerie”…

E a conversa, o que vem a ser?

A palavra “intercâmbio”, com freqüência empregada em assuntos comerciais, é inadequada para exprimir coisas do espírito. Contudo, é o vocábulo que me ocorre para explicar esse tema.

A conversa é um intercâmbio de duas personalidades que falam sobre matéria atraente e que interessa a ambas. Será ainda mais autêntica, se o meu interlocutor puser certa nota pessoal em suas palavras, fazendo com que eu goste de ouvi-lo. Isso é um elemento fundamental da conversa. Há pessoas muito inteligentes e instruídas, cuja prosa é enfadonha; e outras de pouca capacidade intelectual e instrução, que conversam bem, pois sente-se em suas palavras, não principalmente o tema, mas o indivíduo.

Depois de tê-la definido, aponto no que consiste a plenitude da conversa: não é apenas uma troca de informações nem de impressões, mas também de cognições mútuas dos interlocutores, cujas personalidades se manifestam pelo olhar, tom de voz, gestos, etc.

Na boa conversa, a prática da caridade cristã

Pode-se dizer que há na essência da arte de conversar um preceito da moral católica: o amor ao próximo. Para conversar bem, o indivíduo precisa ter uma atitude de alma — portanto, toda ela interna — pela qual se torne interessante para os outros. Do contrário, ele nunca será um bom conviva.

Qual é essa atitude de alma?

Descrevê-la-ei de modo sumário. Quando uma pessoa considera outra e sente afinidade, homogeneidade, ou heterogeneidade harmônica, ela se regozija. Notando, ao invés, dissonância, desagrada-se. Ou seja, ela vibra em contato com outra alma. Esse é o ponto de partida do verdadeiro “causeur”. Ser indiferente às almas, não senti-las, percebê-las, nem vibrar com elas, torna a conversa impossível.

Por exemplo, estou conversando com meu auditório e percebo que todos, ou a maioria, nutrem interesse em conhecer minha alma, como ela se mostra ao longo dessa exposição, etc. E notam que eu, por meu lado, cultivo também a vontade de conhecê-los, de interpretar o olhar de cada um com interesse, como algo que a todo momento tem uma novidade a me dizer…

E assim nos beneficiamos, reciprocamente, desse tesouro que é a arte da conversa.  v

 

1) Feminino de “causeur”, aquele que possui a arte da conversa.

2) Âmago.

Seguríssimo Refúgio

Nossa Senhora é seguríssimo refúgio e fidelíssimo auxílio de todos os que estão em perigo. Não há mãe verdadeiramente católica que não sinta receio pelo que possa suceder a seu filho. Ora, Maria Santíssima, a melhor de todas as mães, quanta solicitude não terá para com seus filhos que vivem neste mundo, sujeitos a toda sorte de riscos?

Mais ainda. Concebida sem pecado original, confirmada em graça desde o primeiro instante de seu ser, Nossa Senhora é Aquela que esmagou a cabeça da infernal serpente. Ela pode, portanto, arrancar qualquer pecador das garras do demônio, e  impedir toda influência que este procura ter sobre as almas.

Esse insondável poder da Santíssima Virgem é uma razão de confiança e de alento para nossa vida espiritual. Em nossos momentos de tentação, nas horas em que temos medo de sucumbir ao pecado, lembremo-nos deste seguríssimo refúgio, deste fidelíssimo auxílio que nos oferece a Santa Mãe de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Arco-íris da esperança

Neste vale de lágrimas em que somos peregrinos, tentações, sofrimentos e perplexidades são inerentes a toda vida espiritual. Contudo, em meio ás nossas dores e aflições morais, sempre vislumbramos a esperançosa figura de um arco-íris: Maria Santíssima!

Ela nos acompanha em nossa peregrinação rumo á Pátria Celestial, ajudando-nos em todas as vicissitudes, envolvendo-nos com seu maternal, constante e infatigável amor, que nenhuma infidelidade poderá esmorecer, e que os reiterados atos de bondade dele emanados não lograrão exaurir.

Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – II

Em Veneza há beleza, elevação e grandeza, o contrário do que ostenta o mundo de hoje. Em nossas almas existe o desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. Esse desejo faz de nós os iniciadores do Reino de Maria.

 

Numa fotografia de um aspecto de Veneza, na  qual o fotógrafo foi especialmente feliz, considerem a pomba, o mar, os campanários, as igrejas e os palácios.

Bolha de beleza pairando pelo ar

A impressão é de que todas essas belezas como que saturam o ar e nos remetem para uma certa irrealidade, a qual está na maravilha dos crepúsculos venezianos; e que a pomba tem algo à maneira  e uma noção disso, e voa deliciada no meio de todas essas coisas. Não é apenas do ar que a pomba gosta, mas dir-se-ia que ela forma um todo só com essa beleza. Nós sabemos tratar-se  de um ser irracional, orientado apenas por seus instintos. Mas não é verdade que se tem a impressão de que ela goza de um bem-estar aumentado por essa formosura? Uma pomba como essa, no Largo do Arouche, em São Paulo, não teria esse bem-estar.

Qual a razão disso? É pelo fato de ela concorrer, como uma obra-prima de desenho, para essas maravilhas. Ela mesma, como está aqui, é linda. Notem como as asas ficam bonitas, como o voo torna-se elegante. Ela é um sonho!

Dir-se-ia que a pomba é uma bolha de beleza que se desprende e fica pairando pelo ar. Estas considerações nos levam a nos perguntar como será aquela perfeição alta e magnífica, para a qual a  humanidade foi feita e tende a possuir antes que a História do mundo acabe, e onde Nossa Senhora será a Rainha. Quando, então, não forem apenas as pombas a voarem pelo ar, mas algo de marial habitando tudo – tomando em consideração que Maria Santíssima é a obra-prima de Deus no Céu e na Terra –, como serão essas coisas? É verdadeiramente indizível.

Uma das maravilhas do universo: o Palácio dos Doges

Aqui encontramos, no primeiro plano, a dois passos do mar – e o encanto está nisso, pois quanto mais próximo do mar mais arrebatador –, sem vedar o trânsito, o Palácio dos Doges.

A meu ver, esse palácio é de uma cor difícil de definir e que varia um pouco de acordo com a luz do dia. Mas nesta fotografia se me apresenta de um róseo muito delicado, mas não homogêneo; percebe-se a presença variada do róseo e do branco nas ogivas góticas, formando uma espécie de contraste.

De si, o bonito seria, de acordo com a lei da gravidade, vermos o elemento mais pesado carregar o mais leve. Então, seria explicável que esse palácio fosse construído de tal maneira que essa espécie de caixotão – é um ultraje chamá-lo assim – deliciosamente róseo, ornado por três ogivas agradavelmente simétricas, pensativas, calmas, tranquilas e nobres, que parecem estar, elas  mesmas, olhando o mar, contemplando-o com a familiaridade  com a qual as grandes pessoas contemplam o lindo; pareceria normal, enfim, que esse caixotão estivesse na terra, e a parte mais  leve, ou seja, as colunas desse andar imediatamente inferior, bem como a colunata que toca no chão, estivessem em cima.

Dir-se-ia que esse edifício, construído assim como está, daria uma sensação de peso medonho, e que esse caixotão vai esmagar e quebrar, a qualquer momento, a colunata. Mas está calculada com tanta inteligência a distribuição dos corpos e dos volumes, que não se tem essa impressão. Pelo contrário, sente-se que essa colunata  carrega sem esforço o caixotão, o qual, recusando-se de ficar na terra, é suportado por essas colunas magníficas, de maneira a permitir a circulação do ar por debaixo dele. A arte orna isso com essa primeira linha ogival muito bonita, e embaixo com aqueles outros arcos, ficando o palácio, por assim dizer, suspenso no ar.

Chamo a atenção para o que há de bem pensado em cada detalhe dessa fachada. Ela ficaria monótona se não houvesse, bem no meio, aquela porta dando para um terraço. Mas se existisse ali mais uma ogiva o palácio se tornaria insuportável. Para aquela porta, aquele terraço tem exatamente o tamanho que deve ter para completar bem e levemente uma das maravilhas do universo, o Palácio dos Doges.

Viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno

Imaginem-se sentados em gôndolas e seguindo na direção dessa praça que se abre mais para o fundo e tem uma torre. Percebe-se, pelas cúpulas, que para essa praça dá também uma igreja, e existe depois outro palácio. Mas há uma parte da praça que dá diretamente para o mar. É o desembarcadouro para as pessoas que descem, um cais. Há cais ao longo de toda essa colunata, a fim de facilitar ao máximo o deslocamento da população.

Notem como existem ali duas colunas. Em uma delas há uma estátua de São Teodoro esmagando o dragão; na outra, o leão alado, emblema de Veneza. No intervalo entre as duas colunas havia um outro “cais” de um gênero muito diverso. Nele alguns homens empreendiam uma viagem perto da qual as nossas viagens contemporâneas são zero, e até mesmo os homens que foram à Lua não são nada em comparação com os que fazem essa viagem, porque é a viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno… Ali eram executados, em troncos especialmente levados para a cerimônia, os condenados à morte.

Lugar lindo, encantador, mas é um dos traços de Veneza. Ela é festiva, mas tem qualquer coisa no fundo de muito grave e até de um tanto melancólico, sem o qual Veneza seria uma banalidade.

Uma renda de pedra

Ali vemos se levantar o campanário, os sinos que servem à catedral. Uma construção originalíssima que destoa do branco de tudo quanto está edificado ao redor. Entretanto, possui também a parte alta toda branca,  com um cone muito bonito em cima, do qual cada triângulo é emoldurado por uma lista branca. Esta torre é do século XX. A original, por questões geológicas, de repente ruiu. Era então Papa São Pio X, que fora Patriarca de Veneza, e impulsionou a construção de uma torre absolutamente idêntica àquela que havia. De maneira que se toma essa como a torre antiga.

Examinem a cor desse mar. Quem a define? É verde, azul? Entra aí outro colorido além do verde e do azul? Também não se sabe. Essa multidão de gôndolas dá um ar festivo, de alegria e de vida, que completa o panorama.

Numa outra fotografia vê-se de perto um pouco daquela verdadeira renda de pedra. No terraço de pedra branca, cada coluna dá a impressão de uma chave, dentro da qual há uma espécie de trevo, cujas folhas têm o desenho esquemático e imaginário de um trevo de quatro, dentro de círculos. Isso seria a orelha da chave; e, embaixo, um pedaço de balcão seria a lingueta da chave. Mas tudo é feito de tal maneira que, encostada uma chave na outra, se têm ogivas. E o ogival aparece aí numa das suas mais belas manifestações.

Um teto que parece levantar voo

Notem a simplicidade de linhas com que a fachada da Catedral de São Marcos é construída. São cinco arcos: dois de cada lado e, no meio, um arco um tanto maior, que interrompe um pouco o curso do balaústre, do corrimão de um terraço que está em cima. De maneira que aquilo serve de teto para o átrio da igreja e também de terraço para se passear em cima. Mais para cima encontram-se ogivas muito abertas, que conservam seu parentesco com a ogiva gótica comum, pelo fato de terminarem naquela ponta reunindo harmonicamente dois extremos, num movimento que tem um resto de ogival. E cada ogiva, feita de uma pedra branca linda, serve de proteção, de teto para uma bela cena em mosaico, com fundo dourado, representando fatos da vida de Nosso Senhor.

Faço notar essas pontas entre arcada e arcada. Dão um caráter de leveza enorme ao teto. Tem-se a impressão de que o teto está para levantar voo. Vemos aí, mais uma vez, traduzir-se aquele anseio do homem para voar. Considerem como cada ponta dessas é bem trabalhada, e como a moldura que circunda cada arco da arcada superior é, também ela, toda eriçada de pequenas pontas.

Parecem, assim, as asas de inúmeras pombas que estão se abrindo para voarem levando consigo, pelos ares, a catedral mil vezes famosa. É uma verdadeira maravilha!

O charme é o aliado natural da grandeza

Chamo a atenção também para um detalhe que, analisado depois de ser percebido, chega a desconcertar um pouco. Mas, enfim, isso é assim e me agrada enormemente. Em cada arco desses há uma portinha, mas nenhuma delas está bem no centro em relação ao arco inferior. Com a mania do igualitário e do decimal que se espalhou pelo mundo no século XIX, os arquitetos, em sua maioria, se fossem construir um monumento como esse, não teriam talento para isso nem de longe. Poriam essa portinha bem no centro de cada arco.

Imaginem que um dedo malfazejo empurrasse essas portinhas bem para o centro. Que monotonia! Foi empregada uma forma de talento por onde a dessimetria dessas portinhas talvez passe despercebidas a muitos. Isso se chama propriamente gênio. Tem algo em comum com o charme, do qual diz o francês: “le charme, plus beau que la beauté” – o charme, mais belo que a própria beleza.

A Catedral de São Marcos está cheia de charmes assim.

O charme está também nessas portinhas… Mas o que não é charme aqui? Só não é charme o que é grandeza. Entretanto, o charme é o aliado natural da grandeza; porque a grandeza sem charme fica pesadona, e o charme sem grandeza torna-se frívolo.

Referi-me à grandeza. Procurem ver na cúpula, atrás, a grandeza, a magnificência. É espantosa! Ela seria muito pesada se não fosse tudo isso descrito anteriormente. Daria a impressão de um panelão colocado ali. Mas olhem a forma da cúpula, a cruz no alto, o jogo de várias pequenas cúpulas, e terão propriamente o charme. É a incomparável Catedral de São Marcos.

Desforra da feiura, da hediondez e da trivialidade contemporâneas

Os venezianos do tempo das palafitas(1) não percebiam o que ia sair do que eles faziam. Mas pode-se supor que já tivessem uma certa propensão para isso, à qual o Batismo deu a realidade, o “élan”, de maneira que saísse o que nós estamos contemplando aqui.

A julgar pela afirmação de São Luís Maria Grignion de Montfort de que os Santos do Reino de Maria vão ser tais que, comparados aos do passado, serão como cedros do Líbano em relação a arbustos(2), a medida de beleza, de verdade e de bem que toda civilização alcança é dada pela medida dos Santos que nela florescem.

Esse princípio, por exemplo, o encontramos subjacente em todas as reflexões que fiz sobre a gruta de Subiaco e São Bento(3).

Mas creio que em nossas almas há um desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. E esse desejo faz de nós os “palafíticos” do Reino de Maria. Contudo, enquanto não se der o Grand Retour(4), não vierem os castigos previstos em Fátima, e tudo isso não for varrido e limpo, quase não conseguimos entrever as belezas vindouras. Entretanto, no fundo de nossas almas existe esse anseio que nos faz discernir a potencialidade para o maravilhoso de cem coisas que conhecemos, mas que ainda não são maravilhosas.

Para isso, cuidemos de ser santos e de ir vivendo. Pelo curso natural do tempo e da idade, muitos assistirão ainda a todas essas maravilhas sobre a face da Terra. Outros as verão antecipadamente – coisa muito melhor –, pois serão chamados por Deus a contemplá-Lo face a face, no Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 246, p. 33.
2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Cap.
I, art. 2, n. 47.
3) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27.
4) No início da década de 1940, houve na França extraordinário
incremento do espírito religioso, quando das peregrinações
de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento
espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar
o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico
fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos,
Dr. Plinio começou a empregar a expressão não apenas
no sentido de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora
de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus
concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

A Santa Igreja

Em sua essência, a Santa Igreja é totalmente imutável e incontaminada. Em meio às confusões, Ela é como uma coluna de brilhantes envolta pelas chamas de um incêndio. Podem as labaredas se elevar a qualquer altura,  podem se expandir e se intensificar: pouco importa, a Igreja permanece de pé.

As chamas não fazem senão iluminá-la…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Símbolos, fantasia e realidade

Sendo constituído de corpo e alma, o homem não se sente plenamente satisfeito enquanto seus sentidos não puderem captar aquilo que seu espírito concebeu. Essa necessidade se torna ainda mais intensa e primordial quando se trata d’Aquele que nos criou: mais do que tudo, temos o desejo de ver a Deus com os olhos da carne, depois de o termos percebido através dos olhos da alma.

Acontece, porém, que Deus não pode se manifestar visivelmente ao homem, pois este se desconjuntaria inteiro diante da sua infinita e sobrenatural magnificência. Para remediar essa impossibilidade, o Senhor dispôs de sentidos tivessem de alguma forma o conhecimento d’Ele. Essa percepção nos é dada através dos símbolos. O que é, pois, o símbolo? É aquilo  que nos faz  conhecer as perfeições do Criador, as realidades sobrenaturais ou as meramente espirituais, de maneira tal que nos tocam no corpo, dão movimento à nossa sensibilidade e satisfazem os nossos anseios de distinguir fisicamente o que compreendemos pelo intelecto.

Por exemplo, o heroísmo é um elemento da virtude da fortaleza. Podemos ter todas as noções teóricas sobre o heroísmo, mas “sentiremos” o que ele é se analisarmos um leão. Deus incutiu neste animal certos movimentos, “élans”, vais-e-vens, que são aná- lagos, à maneira de bicho, aos gestos e atitudes de um herói. O rei das selvas é, portanto, um símbolo que tem em si uma misteriosa  semelhança com coisas da alma, e que nos faz conhecer o espírito de um homem leonino, como terá sido Carlos Magnos e tantos outros personagens históricos que se distinguiram por seu  heroísmo e sua fortaleza. Como nos faz conhecer um pouco mais Aquele que é a Coragem, a Fortaleza e o Heroísmo, Deus Nosso Senhor.

O que se disse do leão, pode-se aplicar a uma águia. Contemplando esta ave que começa a levantar voo, teremos ideia do que é a ousadia soberana, que não duvida, que não toma precauções pequenas e mesquinhas.

O alçar da águia rumo ao sol é semelhante a determinadas atitudes da alma também audaciosa, e tal analogia faz com que entendamos pelos sentidos aquilo que já compreendemos pela inteligência.

Essas simbologias permitem que o homem não julgue monstruoso, mas compreenda e goste de algumas figuras da heráldica que são imagens de altos valores morais e espirituais. Por exemplo, poucos símbolos heráldicos são mais bonitos do que a águia bicéfala. Criatura que, se existisse, seria tomada como uma aberração da natureza, adorna entretanto o escudo e as coroas dos mais  elevados soberanos do mundo. Pintada, ela faz sentir uma universalidade de poder: tantas são as coroas que é preciso mais de uma fronte para sustentá-las. Transmite uma impressão de nobreza, na qual o elemento pensante — a cabeça — é tão mais valioso que o elemento corpo, que existem duas, imperando sobre o resto da matéria física.

Outro belo símbolo de heráldica é o leão alado de Veneza. Olha-se para ele e não se o julga um monstro. É a força conjugada com a leveza, o arrojo com a graça e a distinção, é a superioridade de quem pode se impor pela robustez temperada pela elegância de quem pode voar.

Conta-se um episódio célebre, passado na Veneza sob dependência austríaca, nos velhos e bons tempos da diplomacia cavalheiresca. Um nobre veneziano e um representante da Áustria conversavam num daqueles encantadores balcões da cidade das águas, e os olhares de ambos se detiveram na imagem do leão alado. O austríaco virou-se para o veneziano e disse num tom de pouco caso, como quem graceja: — Curioso este país onde os leões têm asas… O outro respondeu ato contínuo, na mesma toada: — Mais curioso o país onde as águias têm duas cabeças…

Na verdade, estavam fazendo uma brincadeira quase que de salão, porque, de si, nem uma coisa nem outra é ridícula. Tratam-se de símbolos, aos quais se permite uma ousadia que não se concede aos seres vivos. Com efeito, o universo dos símbolos, embora exprima uma realidade, é até certo ponto o mundo da fantasia. Ele se situa entre a fantasia e a realidade: não podendo ser inteiramente fantasia, não será —senão mais raramente — uma mera realidade. De fato, o símbolo será tanto mais artístico quanto mais exprima o fundo da realidade, distanciando-se ao mesmo tempo das aparências desta.

Qual é o papel do leão alado ou da águia bicéfala? É, novamente, fazer repercutir na nossa sensibilidade algo que a mente já compreendeu, tornando essa compreensão ainda mais completa. Por  isso o símbolo é tão conveniente para o conhecimento humano. E, a meu ver, talvez a mais alta expressão da arte, sobretudo a arte inspirada pela Igreja, seja a de proporcionar ao homem a  manifestação dos símbolos que tanto enriquecem sua inteligência e seu espírito.

Havia uma escola de pintura do século XIX que costumava apresentar a realidade sempre envolta numa espécie de névoa. Na verdade, esta missão da arte tinha em vista apresentar um certo caráter simbólico que a névoa confere aos ambientes e aos objetos por ela abarcados.

Imagine-se, por exemplo, um castelo gótico no alto de um monte ou na encosta de uma colina, meio agasalhado na bruma. Assim ele diz mais o que deseja expressar do que se estivesse sem a bruma. Por quê? Porque esta apresenta o lado irreal, que é preciso a fantasia juntar ao real, para a sensibilidade ser inteiramente tocada. Numa palavra, o símbolo ajuda a sensibilidade a se elevar às alturas, onde o intelecto do homem foi conduzido pela razão, e, sobretudo, pela fé.

Para concluir, lembremos que Deus outorga a certos homens e mulheres a missão de simbolizar. E, curioso, nem sempre são pessoas de muito valor. Porém, possuem uma estampa, um modo de ser, que, se corresponderem à graça, externam e tornam particularmente atraentes determinadas virtudes. Por causa disso, são chamados a praticá-las eximiamente, transformando-se em  anúncios luminosos da perfeição moral. Estes são os Santos. E um Santo nunca se apagará da história.

Plinio Corrêa de Oliveira

Coliseu – Magnífico Palácio Espiritual

Não é raro visitarmos algum ambiente, monumento ou lugar histórico, e termos a impressão de ali estarem presentes algumas pessoas que muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais pro- funda à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender melhor o espírito dessas personagens do que se houvéssemos diariamente convivido com elas.

Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu sangue, para se tornarem – no inspirado dizer de Tertuliano – sementes de novos cristãos. Heróis da Fé, admirados por todo o mundo, em todos os séculos, desde os tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.

Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é uma das matrizes de maravilha nesta terra.

Sua maior beleza aparece à noite, quando as sombras e trevas atenuam o prosaísmo das coisas modernas que o circundam, e o silêncio das altas horas envolve os ruídos cacofônicos da cidade que adormece. Em certo mo- mento, enquanto uma lua graciosa e amiga esparge suas aveludadas cintilações, ouve-se o demorado silvo de uma ave noturna, aninhada sob um dos arcos do Coliseu. Aquela espécie de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante de um mártir, a derradeira prece lançada aos céus por uma alma a caminho da suprema imolação…

Contemplar aquele anfiteatro de tragédias e de heroísmos leva nossa imaginação a reproduzir um dos mais belos episódios de martírio que registra a hagiografia católica.

É noite na Roma dos Césares. Aqui e ali, as tochas que a iluminam vão se apagando. Pouco a pouco, esmorecem os barulhos das festas, extinguem-se conversas e risos. Na soberana metrópole do mundo, tudo é calma e tudo repouso. Despertos, em meio a densas trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu, orando e se encorajando mutua- mente. Por vezes a noite é borrascosa, o tempo inóspito, tornando ainda mais horrorosa e dorida aquela vigília para a morte.

De súbito, ouve-se o bramido de uma fera ecoando pelos lúgubres porões do grande circo. Rugido de animal faminto, há dias privado de ali- mento para que mais encarniçado se atire sobre sua vítima, na hora do fatídico encontro. E o urro do tigre, do leão, da pantera ou da hiena repercute como um estremecimento de terror nos corpos dos católicos. Alguns choram, com medo de lhes faltar a coragem no momento decisivo. Suplicam a Deus, com toda a alma, forças superabundantes para não cometerem a pior das infidelidades, para não apostatarem da verdadeira religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sereno em meio a tanta apreensão, um dos cativos, já entrado na ancianidade, percorre as fileiras de prisioneiros, dirigindo a cada um palavras de ânimo e esperança. Certamente re- corda-se ele, nesse extremo de vida, daquela voz suave e paternal que – conforme reza a tradição – um dia, em sua remota infância, penetrou no mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a Mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”. Agora, imitando o Divino Redentor, promete àqueles ir- mãos de Fé a mesma bem-aventurança eterna.

Aos poucos vão se atenuando as trevas, e a claridade da manhã traz consigo o ponteiro que marca a hora do sangrento suplício. Os rugidos das feras tornam-se mais intensos e aterradores; as súplicas, mais prementes e fervorosas. Soam os clarins, anunciando a chegada do César. Abrem-se as prisões, e os mártires são conduzidos ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos e maltratados, o povo pagão que lota as arquibancadas do Coliseu explode em vaias e apupos.

Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas se precipitam sobre as carnes dos católicos. Exceto uma. Dando provas da autenticidade da Fé que professa, aquele velho cativo detém miraculosamente o leão que cresce para ele. Abre seus grandes braços e eleva aos céus uma extraordinária prece: “Senhor, assim como o trigo é esma- gado para se transformar na Sagrada Eucaristia, assim esta fera triture o meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”

Só então, desvencilhado da misteriosa força que o retinha, o animal se atira sobre o mártir, despedaçando-o. O herói foi Santo Inácio de Antioquia, aquele que, quando menino, fora acariciado pelo Mestre Divino, recebendo d’Ele a pro- messa do Reino dos Céus.

E a noite recai uma vez mais sobre a grandiosa mole do Coliseu. As areias do circo pagão, embebidas de sangue católico, transformam-se de novo em campo arado e fértil, de onde germinarão muitos outros filhos da Esposa Mística de Cristo.

O menino e o mar

Na primeira narração auto-biográfica de Dr. Plinio sobre sua meninice, publicada no número passado, deixamo-lo numa praia de Santos, contemplando o mar. Dr. Plinio continua aqui suas  lembranças de como foi discernindo e optando pelo bem, perante as coisas que observava na infância. E como daí surgia o combate ao mal que via em si.

 

Visitando o mar de Santos — a praia do José Menino ou o Boqueirão — lembro-me da impressão que me causavam as ondas quando eu as olhava quebrarem-se a certa altura. Vinham aquelas toalhas de água que se estendiam sobre superfícies mais ou menos amplas, e depois, como por uma força misteriosa, eram atraídas de volta e refluíam, refluíam, refluíam.

Em meu espírito elas evocavam dois outros movimentos que afetavam a sociedade em que eu vivia: o da onda enorme da influência e dos estilos de vida hollywoodianos da década de 30 que avançavam, e o da onda da influência européia que retrocedia. Era a velha Europa da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração alguns aspectos fugazes do tempo em que, com quatro anos, eu a visitara.

Era a velha Europa da qual ouvia falar sempre, nas conversas caseiras; a velha Europa que eu admirava num livro que papai trouxe da Alemanha, quando lá estivemos em 1913. Esplendores da Alemanha militar Esse livro intitulava-se “L’Alemagne Moderne”. Obra de um autor francês que escrevia sobre a Alemanha do tempo do Kaiser Guilherme II, fartamente ilustrado com cenas da  Alemanha daquele tempo. Havia fotografias das regiões industriais e da vida econômica e capitalista da Alemanha que não me interessavam. Mas havia também fotografias dos panoramas alemães e da Alemanha artística — que maravilha! Também da Alemanha de corte — que esplendores!

Eu folheava o livro longamente, embevecidamente, dez vezes, vinte vezes… Depois vinha a Alemanha militar. Eu não posso me esquecer de uma fotografia, colorida com os recursos gráficos do empo, mas que me encantava. Retratava uma parada militar na Berlim kaiseriana, no campo chamado “Tempelhof” (o “Pátio do Templo”), nos arredores de Berlim.

Era uma grande planície à maneira de tabuleiro onde as tropas do Kaiser evoluíam. O Kaiser montava um bonito cavalo, portava um capacete de aço com a águia imperial e passava o bastão de  comando a um general, porque ele devia partir.

Os exércitos do tempo tinham cavalarias magníficas. Não posso me esquecer de uma fotografia um pouco menor, que retratava o “hurrah” da cavalaria: o momento em que todos gritam “hurrah” e os  cavalos avançam contra o adversário de parada, o adversário imaginário. Sabia-se bem que, na mente dos alemães, eram os franceses que estavam do lado oposto.

Mas, com certeza, na tribuna dos diplomatas o embaixador francês assistia aquilo imprevidente, impávido, cético, fingindo achar que esse desfile nada tinha a ver com ele. “Un hurrah de chevalerie”,  lia-se na legenda da foto, na qual a gente via avançar a cavalaria com todos os soldados empunhando espadas. Quanto eu me entusiasmava com essas perspectivas! Alemanha tradicional X Alemanha industrial. Havia no livro fotografias da indústria alemã que tinha aquele quê de metálico, de mecânico, de material, de inanimado no sentido próprio da palavra, isto é, sem alma, inerente a todo ambiente industrial, ainda em nossos dias, e talvez principalmente em nossos dias.

E eu analisava o contraste daquelas fotografias com as cenas de Corte e os retratos do “Kaiser”. Lembro-me de uma fotografia muito bonita: o “Kaiser” e a “Kaiserin” (a Imperatriz) recebendo as  homenagens de seus pajens, numa sala esplendidamente iluminada.

A “Kaiserin” era uma dama simpática, cheia de bondade e distinção. Os dois estavam em pé e os pajens belamente vestidos, em trajes de “Ancien Régime”, formando um quadrilátero diante do Kaiser. Olhava aquilo e achava lindo. Mas havia alguma coisa de que eu não gostava; “algo que já cheirava a indústria ”: de repente, viro uma página e vejo uma fotografia do Kaiser, não mais vestido de  uniforme, como se vestiam os reis daquele tempo, mas em civil, com ar galante e com uma flor no peito. Pouco depois, uma outra fotografia, da célebre, famosa, histórica catedral de Colônia, uma  das mais bonitas do mundo, que foi terminada no tempo do Kaiser e que trazia, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo  Testamento.

Ficava completamente ridículo! Era indústria de um lado, ridículo de outro, tradição no meio, formando um conjunto objetável. Quando um pouco depois disso assisti, no cinema, a cena do enterro do Imperador Francisco José, da Áustria- Hungria, fiquei deslumbrado. Tudo era como devia ser, exceto num ponto: faltava a força e o empenho que eu admirava no estilo prussiano. Eu me perguntava: “Não há jeito de juntar essas duas coisas? Quão belas, quão nobres são as coisas austríacas! Aqueles uniformes, que coisa esplêndida! Francisco José, que coisa magnífica! Mas essa gente toda, colocada em cima de cavalos, em seu “hurrah ” de cavalaria não é capaz de enfrentar o “hurrah” do Kaiser.

Ora, essas coisas bonitas só são verdadeiramente bonitas quando vitoriosas; e só são vitoriosas quando heroicas; e só são heroicas quando profundamente sérias. Eu percebia que era preciso filtrar, era preciso tamisar o que me vinha dessas nações. Eu não podia aceitar aquilo como um bloco.

De outro lado, que critério usar para filtrar? Que critério para tamisar?

As outras nações da Europa

Extasiava-me também com as outras nações da Europa, cujos produtos me chegavam em abundância, porque ainda não havia as grossas travas de alfândega que depois vieram. Por todo lado  éramos penetrados pela substância européia, enquanto soprava o vento norte-americano.

Nessa contradição, tomando contato com ares franceses, ao mesmo tempo que eu me maravilhava, dizia de mim para comigo: “mas falta seriedade nisso! Em todo esse mimo, em toda essa graça, falta algo”. Eu vejo que essa nação descende de cruzados, mas eu não vejo que cruzados descenderiam dessa nação. Santa Joana d’Arc, que admirável! Godofredo de Bouillon, nem sei o que dizer!

Olhava Versailles cujas carruagens  me tinham entusiasmado tanto; olhava o Trianon, olhava o Petit Trianon, Fontainebleau, as florestas… Como tudo ria e sorria de modo encantador! Mas eu pensava: “isto é o sorriso. Eu quero ver agora a carranca, eu quero ver a força!”

Um trabalho de seleção, com base no critério católico

Era preciso selecionar, era preciso tamisar; não bastava dizer “não” à influência hollywoodiana, mas era preciso rejeitar também a frivolidade francesa e recolher da Europa a pura seiva da Civilização Cristã com base no critério católico. Eu não via que as pessoas de minha época fizessem isso. Notava que, mesmo pessoas de posição na Igreja, pactuavam indolentemente com a influência “yankee” que entrava e olhavam sem saudades para a influência européia que recuava.

Mas quando eu estava sozinho, ao lado da reflexão sobre qualquer coisa — uma concha, um caramujo… —, vinham de modo natural à tona essas considerações que eram longamente analisadas por mim. Eu pesava, comparava, admirava, censurava, e a cada passo que via algo admirável, fazia uma comparação com a Revolução anticristã que entrava e compreendia melhor como esta era rejeitável.

Lembro-me que me sentava sozinho naquelas amuradas de canais que entram pelo mar de Santos. Meu pretexto, para poder me isolar, era pescar siri. Arrumava uma pedra, atava-a de um lado a um pedaço de carne crua que me davam na cozinha da casa de meus tios, e de outro lado a um barbante, e partia com um baldezinho. Era o pretexto para ficar sozinho, pensando. Voltava depois  para casa com três, quatro, cinco siris, que eram jogados fora.

Naquela amurada de pedras que invadia o mar, eu ficava cercado de ondas que vinham e voltavam. Às vezes andava pela praia vazia, ao longo da qual havia casas de família ainda dignas e antigas, e que me pareciam bonitos palacetes agradáveis de serem vistos de longe. E as reflexões começavam a me subir ao espírito. Contemplava o mar de Santos, que a meus olhos parecia grandioso.

Naquela época, o mar conservava algo de ameaçador; os que navegavam pelo oceano ainda tinham medo de alguma coisa. E o medo do mar dava- lhe prestígio…

A alguma distância de mim, do lado do Guarujá, havia uma ilha com uma nota de tragédia, quase colada ao continente. Uma ilha de um granito vagamente rosado, não especialmente bonita, mas agradável de se olhar. Era a ilha das Palmas, onde se dizia que havia um hospital de doenças contagiosas. Eu pensava no infortúnio daqueles que eram colocados fora do convívio humano: “fiquem longe, não queremos contato!” No extremo da terra, isolados, somente ouvindo as ondas do mar…

Esse infortúnio naquele ambiente se me afigurava impressionante. Eu tinha muito medo do contágio, mas considerava fascinantes as meditações que ali se pudessem fazer.

As grandezas do mar, os sorrisos do mar, o rumor do mar… O mar brilhando à luz das quatro horas da tarde, no crepúsculo das cinco ou das seis horas da tarde, e por fim, no ponto último onde no horizonte se encontrava com o céu: olhar aquilo me deixava como que intrigado.

Tudo isso me parecia muito belo. E eu refletia: como isso é diferente  da coisa americana! Como isso convida a pensar! Como, debaixo de vários pontos de vista, pode-se dizer que isso é profundo,  é grandioso, é infatigável, é incessante, é carinhoso, é jeitoso, é discreto. Mas, também, como é solene! Oh, o mar!

Como minha alma que comporta tudo isso é diferente da alma comprimida, achatada, passada na plaina pela Revolução, tão rasa, tão lisa, tão banal, tão corriqueira de tantos daqueles que eu conheço de minha idade! Que mundo está sendo preparado?! Que banalidade!

Combate à tendência para o romantismo

Essa constatação levava-me a deter o olhar não mais na formosura do mar e nas transcendentes belezas a que o mar conduzia, mas a me perguntar: “mas então, como sou eu?

Vou me descrever para mim mesmo

E na hora de me descrever para mim mesmo, o próprio enlevo pela tradição que eu amava, e pela Igreja que eu quase diria adorava, levava-me a perceber o reflexo dessas coisas na minha alma e a ser tentado de enlevar-me comigo. Era a hora exata em que os estampidos sonoros de Wagner, ou melodias ultra-melosas de Chopin me passavam pela memória.

Eu tinha tendência a identificar minha pessoa com a tradição — não por minhas próprias qualidades, mas porque em mim se refletia aquela tradição que eu amava. Ora, nessa identificação, havia o convite para uma posição admirativa e lânguida a respeito de mim mesmo. Era a tentação para o romantismo: a ilusão de ótica por onde a pessoa se põe no centro de tudo, põe-se como foco da  tradição, põe-se como o modelo da Contra-Revolução e já não tem interesse em olhar para o mar a não ser na medida em que o mar se reflete nela. Já não tem interesse em olhar para a História, a não ser na medida em que se sente encaixado  ou relacionado, ao menos pela fantasia, com a História. Pelo peso do pecado original, a pessoa acaba considerando secundário o que antes admirava  e tornando principal aquilo que o pecado original vulnerou, que é o próprio homem.

O mau efeito dessa tentação era como algo lânguido que eu sentia dentro de mim, e pensava: “Não posso consentir nesses pensamentos porque neles há alguma coisa de mau. O que seja, eu saberei depois. Mas o fruto é ruim. Eu preciso ter a serviço dos meus ideais o ímpeto dos ‘hurrah ’ de cavalaria. E tudo o que me afastar desse ímpeto é mau. Tais pensamentos podem ter coisas boas  misturadas, mas fundamentalmente têm algo ruim dentro. Não e não!” Nunca mais ouvi as músicas que eram conexas com esse estado de espírito: nunca mais Chopin, Wagner, Liszt, para não falar de Mendelsohn e Brahms.

Essa introspecção langorosa e derretida de si próprio é a substância do romantismo. Schumann tem uma música chamada “Revêrie”. “Revêrie” quer dizer sonho. A gente vai ver, o tema do sonho é ele,  nquanto se admirando e tendo entusiasmo consigo. O romantismo desnorteou as melhores almas O homem reto nunca se admira a si mesmo, nunca se contempla, nunca se compara, porque  sabe que isso é um poço envenenado, do qual uma gota de água que beba o intoxica. A perfeição nessa matéria, quando se contempla o mar, consiste em evitar ver o reflexos do mar em si, mas pelo contrário procurar vê-lo como simbolizando Deus Nosso Senhor, a Igreja Católica e todas as grandezas.

Ah, se isso tivesse sido feito pelos românticos, quantas almas se teriam salvo e teriam dado resultados esplendorosos! Como teriam sido outras as gerações!

O romantismo tomava as melhores almas daquele tempo, isto é, as que estavam ainda sujeitas à influência européia decadente, e as enleava nessas malhas da auto-contemplação. Enquanto que o dito americanismo hollywoodiano perdia os que eram menos bons. Diante de meus passos, exagerando algum tanto, eu poderia dizer que os caminhos que se abriam eram sendas de perdição.

As frivolidades dos pseudo-tradicionalistas românticos

Nossa Senhora me ajudou a fazer a escolha de tal maneira que do romantismo não ficasse nada e, espero eu, que algo tenha ficado do “hurrah” da cavalaria, da fidelidade à tradição. Aqui se tem, portanto, o que era essa batalha interna, e cada um pode fazer a si mesmo uma aplicação. Eu conheci pessoas bem apreciáveis apaixonadas pela tradição. Com elas acontecia por exemplo que  começavam a estudar história e de repente um inventava que era conde, começava a se vestir de conde, com roupinhas, gravatinhas, colarinhos, anéis — dois, três, quatro ou mesmo cinco anéis diferentes para serem usados conforme o dia — , e adotava modos de falar em que procurava representar um papel histórico. No fundo, tratava-se do egocentrismo. Eram pessoas das quais se ria e que ninguém tomava a sério, que não atraíam ninguém, que não impressionavam ninguém, não arrastavam ninguém. Porque não era a História, não era um ideal, não era um absoluto, não era Deus que estava presente nelas.

Quantas e quantas coisas desse gênero torciam os melhores. Ia-se conversar às vezes com um que tinha o ar mais tradicional, e ouvia-se só bobagens. Eu procurava em vão descobrir a que doutrina, a que pensamento, a que princípio queriam chegar. Nada: o interesse era o anelzinho. Ora, anelzinho não convence!

Havia uma deformação análoga a essa, que era o efeito do romantismo na esfera religiosa.

O que era o romantismo religioso?

Era uma sentimentalidade religiosa que desvirilizava, que afrouxava e debilitava a vontade, que não formava fiéis combativos, mas propunha um ideal de caridade mal concebido, que dava no tipo humano do carola, do beato ou da beata, tão caricatos. Voltemos à praia de Santos. Em meio às reflexões naturais de um menino que se retira sob o pretexto de pescar siri, intervém a Providência.

O Santuário do Embaré começava a ser construído. Uma igreja de um gótico muito provinciano, mas ainda gótico. Da praia, eu olhava para aquela construção e dizia: “Oh, Santa Igreja Católica que não mudas! Tu és fiel ao gótico, que é a morada de minha alma! Tudo muda em torno de ti. Mas tu aqui, diante do mar, em meio à tempestade hollywoodiana, tu ergues as tuas torres góticas aos olhos de Deus e do sol que vai nascer”.

Contemplá-la ajudava-me a discernir entre o bem e o mal, e me enchia de entusiasmo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (setembro de 2003)

Expressão da alma humana e símbolo de Deus

Se me fosse dado passar uma tarde diante do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados seriam para mim esses momentos. Ali me agradaria estar, ora contemplando e analisando o mosteiro, ora pensando em temas elevados que teriam com ele uma certa afinidade, sentindo sempre o calor de sua presença como ponto de referência para o voo variegado da cogitação de alguém que descansa. Por onde enveredariam essas análises e reflexões?

* * *

O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos, uma unidade na variedade, que simboliza de modo muito eloquente determinados valores sobrenaturais, bem como certos movimentos e qualidades da alma humana. Esse simbolismo é mais bem compreendido se considerada a relação entre os diversos elementos que compõem o cenário.

Primeiro, o mar e a elevação rochosa. Para se medir a importância do mar nesse panorama, basta imaginarmos que, depois da praia, não houvesse mais o oceano, mas começasse a se alastrar ali uma megalópole contem porânea. Como tudo mudaria e perderia sua beleza tão singular!

Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se enriquece com a presença do mar e seus diversos movimentos! Ora ele vem meio caprichoso, “boudeur”, fazendo um pouco de fronda, inunda a praia,  enche todos os espaços em volta do monte e acaba por se chocar contra os rochedos que ele mesmo talhou, e com os quais construiu uma espécie de muralha natural para conter seu próprio ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas da areia. Ora são ondas que vêm e vão, lambendo a praia em todas as direções, como se o mar inteiro estivesse se espreguiçando  e  olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do alto o observa.

E nisso temos a expressão de um estado de alma. Pois uma das formas de admirar o Mont Saint Michel seria a de alguém que, morando em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto se  espreguiça, de sua janela o contempla.

A admiração comporta essa atitude de espírito. Considerando o mar, poderíamos ainda ver seus diferentes movimentos se acercando ou não do mosteiro, admirá-lo a distâncias diversas, como um  símbolo dos movimentos — legitimamente vários — da apetência humana.

* * *

Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso que aparece junto ao monte, quando as águas refluem e dele se afastam. A pergunta que nos vem à mente é esta: seria mais bonito que o mar tocasse continuamente no mosteiro, e nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno?

Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a grande praia tem seu papel. Em determinados momentos, ela permite ao mosteiro conter o mar à distância, e como que dominar em torno de si uma periferia, tendo a seus pés areias submissas e rasas.

E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos também analogia com outro estado de alma do homem, quando este exerce alguma função de mando e senhorio.

Por sua vez, o rochedo lucra bastante em ser único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me inegável que sua beleza ficaria diminuída se houvesse quinze morros como ele, encostados uns nos outros, formando uma espécie de cordilheira que avançaria para o mar. O fato de ser único quase nos faz esquecer de sua altura. Pois quem está cercado de areia por todos os lados, tem todas as alturas. Ele, nessa planície, não é um anônimo: é supremo.

Ele é ele, envolto por elementos rasos, dominando-os só por si. Muito mais do que sua altura, vale sua unicidade. A esta característica do Mont Saint Michel correspondem também algumas disposições da alma humana.

De fato, há coisas que ela admira quando são únicas e não vêm acompanhadas de outras igualmente belas. Por exemplo, uma joia constituída apenas de uma fina corrente de platina, da qual pende um brilhante grande e claríssimo, posta sobre um fundo de veludo negro, pode ser mais esplêndida do que uma outra emoldurada por cem pedras preciosas. Às vezes é mais bonito ostentar essa valiosa companhia, outras vezes é apresentando-se como único. São estados do belo, que equivalem a estados do espírito humano: ora cada um de nós lucra sendo visto no seu contexto, ora  considerado na sua unicidade.

E para alçarmos logo o supremo voo dessas comparações, digamos que esse aspecto do Mont Saint Michel é uma pequena imagem do por onde o próprio Deus é único. Essa é uma rocha firme e alta, no meio de areias e praias movediças, como Deus é eterno e supremo no meio do movediço das coisas que Ele criou.

* * *

O rochedo e a vegetação. Destruamos esta e veremos como a aparência daquele fica prejudicada. Porque é agradável vislumbrar algum aspecto do mosteiro a perder-se na mata cerrada, a qual imaginamos fresca, coberta de sombras, e talvez umedecida por duas ou três fontes que, nascidas do alto, por ela correm num suave e apaziguante murmúrio…

Sem dúvida, é interessante ver o edifício como que se desfazendo em sombras e mistérios. Tanto ou mais bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se ao rochedo que lhe serve de alicerce e dominando-o; é contemplá-lo na elegância de suas linhas que avançam para o céu, e na solidez de suas pedras que resistem e se afirmam diante dos elementos adversos.

É bela a alma humana quando, com franqueza, proclama sua personalidade, se exprime e se define. É igualmente bela quando, com discrição, conserva alguma coisa consigo, exclusivamente sua. Ter seus mistérios e suas explicações, ter suas proclamações mas também suas intimidades, constitui um jogo de aspectos muito nobre para o espírito humano. Então, não será algo em nós que  aprecia sua própria penumbra, e se deleita em olhar para o Mont Saint Michel? E não será algo em nós, sedento de proclamar-se, de afirmar-se e de ser uma fortaleza, que se identifica com esse monte que assim se declara à luz do sol?

Sim, em todo homem se encontram essas várias disposições. Temos, em nossa alma, facetas que gostariam de se mostrar inteiras, sem véus; temos zonas delicadas que confiamos a poucos; e outras que, embora façam parte de nossa  riqueza, nem nós conhecemos e tão-só as pressentimos, pois são vistas apenas por Deus.

Resultado, a alma humana encontra na variedade do Mont Saint Michel uma expressão de si mesma, uma semelhança e uma alegria.

* * *

O mosteiro, mais bem um conglomerado de prédios distintos, tem algo de fortaleza, algo de residência e algo de igreja. Ombreando-se por entre as irregularidades do morro, as casas de uma pequena aldeia se eclipsam à sombra do grande e proeminente edifício religioso. No interior deste, um claustro que exprime ordenação e sabedoria extraordinárias, nascidas da piedade medieval, filha ela mesma da ordem e da sapiência da Igreja Católica. Imaginemos a vida entre essas paredes sagradas: monges estudando em magníficas bibliotecas ou cantando o Ofício na igreja; um que se acha recolhido em sua cela, desenhando lindas iluminuras num pergaminho, enquanto outro na oficina entalha um bonito capitel para uma coluna ainda desprovida de ornatos.

Depois, na periferia das construções, há espaços para a luta e a guerra. Confundindo-se com as rochas, erguem-se como que muralhas nas quais podemos figurar monges-cruzados resistindo e expulsando, passo a passo, os invasores que debalde intentam conquistar a fortaleza inexpugnável.

Como tudo se encaixa bem no Mont Saint Michel! Síntese de oração, de estudo, de recolhimento, de arte e de luta. Unicidade que encontra sua máxima expressão na torre do campanário, forte, desafiante, inamovível, como se fora um pesa-papéis colocado sobre papéis diferentes, como quem diz: “O vento não os faz esvoaçar nem os tira daqui!” No alto dessa torre, uma flecha.

No cimo da flecha, a estátua do Arcanjo, que parece proclamar: “A síntese, a correlação de todos esses aspectos é tão vária e tão imensa que se perde nas nuvens, abisma-se no céu!”

E então poderíamos dizer que, no seu conjunto, o Mont Saint Michel é um magnífico símbolo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria, Rainha dos Doutores, Rainha dos Profetas, Rainha dos  Mártires e dos Guerreiros, Rainha de todos os Santos.

Mais. Símbolo d’Aquele que veremos face a face na bem-aventurança eterna, no seu vulto inteiro, embora não na totalidade de cada uma das suas perfeições: Deus Nosso Senhor, infinitamente claro e infinitamente misterioso, pelos séculos dos séculos. Amém!

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 18 (Setembro de 1999)