Equilíbrio por excelência

Comentando, a pedido de seus jovens discípulos, uma das últimas fotografias de Dona Lucilia, Dr. Plinio analisa um marcante e fundamental traço da personalidade de sua extremosa mãe: o equilíbrio.

 

O misto de seriedade, de gravidade, de bondade e até de meiguice que se exprimem na fisionomia dela são qualidades que existem nela de um modo tão excelente, e que se combinam para formar um todo tão agradável de ver no seu conjunto, que se fica com a vontade de olhar indefinidamente.

Profunda diferença entre Dona Lucília…

Combinam-se aí algumas qualidades que são difíceis de combinar porque têm qualquer coisa de antitético. Não é de contraditório, mas que poderia parecer à primeira vista. Qualquer coisa que, por outro lado, o espírito moderno recusa profundamente, mas que por causa disso mesmo agrada nossos espíritos também profundamente. Nós vemos nela uma espécie de corretivo para o espírito moderno; há qualquer coisa de equilibrado, de tal maneira que não se saberia dizer que pudesse ser maior nela.

Essa fisionomia é a do equilíbrio por excelência. Não há – pela graça de Deus, porque essas não são qualidades meramente humanas – nenhum perigo de sair, diante de um fato que a choque muito, uma palavra desequilibrada.

Digamos, por exemplo, uma coisa que a qualquer mãe chocaria no auge: imaginem que, estando ela numa sala de sua casa, entrasse uma pessoa e lhe dissesse:

— Dona Lucília, o Dr. Plinio acaba de ser assassinado aqui na sala ao lado.

Seria um choque imenso, ela era capaz de morrer. E o indivíduo acrescentasse:

— Quem o matou fui eu.

Ela poderia ter qualquer reação, menos a de insultar o assassino.

Qual seria a reação dela? Ela poderia ficar algum tempo desmaiada, chorar com um pranto muito longo e dolorido e até gemer alto:

— Ai, meu filho!

Poderia dizer ao homem:

— Mas, por que o senhor fez isso com o meu filho?

E como as mães são todas tendentes a se iludir com o filho, ela poderia acrescentar para ele:

— Ele era tão bom. Por que o senhor o matou?

…e muitas mães imbuídas da mentalidade moderna

Entretanto dizer a ele: “Cachorro! Bandido! Ponha-se fora daqui!”, não saía. Pegar um objeto e atirar nele, não tinha possibilidade; a reação seria equilibrada.

Mas digamos que o assassino quisesse, numa dessas atitudes desequilibradas de facínora, chegar perto dela para agradá-la e consolá-la. Ela tiraria o corpo, profundamente desagradada e afirmaria:

— Não toque em mim!

Infelizmente há muitas mães, imbuídas da mentalidade moderna, que agiriam com desequilíbrio nessa ocasião. Uma primeira atitude desequilibrada poderia ser de sentir pouco a morte do filho.

— Mataram? Mas o corpo dele onde está? Precisa avisar à polícia. Vamos arranjar, então precisa vestir o cadáver…

E a coisa iria por aí.

Poderia ocorrer – se fosse uma senhora com um feitio mais tradicional, mas dentro do desequilíbrio moderno – que ela pegasse um objeto e jogasse em cima do sujeito. Infelizmente, não estaria excluída a hipótese de ela falar um palavrão.

Dona Lucília poderia dizer ao indivíduo:

— Saia de minha casa já! Não a polua com a sua presença. Eu me arranjo na pior dor da minha vida. Saia!

Porém se o assassino dissesse, contrito:

— Minha senhora, eu não sou digno de estar na sua casa, mas lembre-se de que tive uma mãe que me quis bem como a senhora amou seu filho, e tenha pena de mim.

Ela era capaz de não chamar a polícia. Se alguém quisesse fazê-lo, ela não se oporia, mas ela poderia não chamar.

Ao cabo de um ano, digamos, depois desse episódio, mamãe estaria ainda “sangrando” pelo que acontecera nesse dia. Mas ao contar o fato e se referir ao assassino, poderia dizer “infeliz” ou “miserável”. Mas chamá-lo de cachorro, monstro, etc., não faria. Havia um equilíbrio, um limite para cada coisa.

Perda do patrimônio devido à omissão de um parente

De outro lado nota-se nela um fundo de tristeza. Mas não é uma tristeza que arranque dela expressões de revolta, nem de inconformidade com os causadores dessa tristeza. Ela está olhando para o passado, medindo mais uma vez o que foi feito e que não deveria ter sido realizado, e está chorando no interior de sua alma. Mas, no fundo, ela possui a calma de uma pessoa que almoçou e está descansando um pouco, depois da refeição. É o equilíbrio! O equilíbrio no bem, na verdade, no dever, mas sempre o equilíbrio. Este era o traçado contínuo da vida de Dona Lucília: em tudo e por tudo, em todos os aspectos da sua vida, acontecesse o que acontecesse, a atitude dela era de equilíbrio.

Passou-se com minha mãe o seguinte fato: Durante uma viagem que meu pai teve que fazer a Pernambuco, ele a aconselhou, e ela aceitou: dar uma procuração a um parente dela, para que este tomasse conta dos seus bens. Esse parente, entre outras “maravilhas”, fez a seguinte: ele devia renovar o seguro do edifício contra incêndio, mas deixou esgotar o prazo e o resultado foi que, no dia seguinte ao vencimento do seguro, o prédio pegou fogo e ela perdeu o patrimônio.

É ou não é verdade que os senhores conhecem senhoras que teriam atitude de desequilíbrio nesse caso? A começar por um conselho para o parente: “Não apareça tão cedo aqui!” E podia ser em termos muito mais quentes do que esses…

Dona Lucilia, na noite do próprio dia em que aconteceu isso, quando ela ainda estava “digerindo” a péssima notícia, ele aparece e a cumprimenta. Ela disse boa-noite para ele, com calma, com normalidade, fê-lo sentar e pediu:

— Fulano, explique-me um pouco como foi isso, porque eu não entendi bem.

Ele deu a explicação, e ela depois me contou:

— Coitado desse nosso parente, passou por um grande desgosto.

Uma outra pessoa diria:

— Que me importa o desgosto dele? Foi um relaxado. Se há uma coisa que um homem que tem uma procuração não pode fazer é deixar passar o prazo de vigência de um seguro contra incêndio. Ele está gravemente responsabilizado por isso, e agora deve entrar com o dinheiro dele para ressarcir o mal que me causou.

Mas a resposta de mamãe seria:

— Oh! coitado, ele tem muitos filhos. Nós podemos viver menos bem sem isso. Não vamos escangalhar a vida dele.

Sofrer na Terra para chegar ao Céu

É um equilíbrio com bondade, onde entra muito o coração, não um equilíbrio metálico; mas que não leva a bondade a dominar a justiça. Se esse procurador tivesse lesado terceiros em benefício dela, ela teria exigido que esse homem restituísse para a pessoa lesada tostão por tostão, inclusive com os juros devidos. Sem nenhuma dúvida.

Assim eu poderia contar cem episódios, se houvesse tempo e se não tratasse de pessoas às quais alguém que tome conhecimento desses fatos possa vir a identificar, pois não quero estar difamando ninguém. Tenho certeza de que no Céu, onde ela se encontra, mamãe está aprovando a minha conduta.

Vê-se, nesta fotografia, que é uma senhora que atingiu uma idade extrema. Ela estava com noventa e dois anos nessa ocasião, idade em que falecem os que morrem tarde. Foi uma pessoa que não exerceu nenhuma profissão. Entretanto percebe-se que ela carrega consigo um grande cansaço. Cansaço do quê? Em parte é o que nós poderíamos chamar o cansaço do equilíbrio.

Cansa estar procurando o equilíbrio em tudo, e cumprindo a justiça em tudo. Levar uma vida inteiramente dentro dos Mandamentos é preparar-se para o Céu, mas ainda não é o Céu. Pelo contrário, é o sofrer na Terra para chegar até lá.

Vemos aí o extremo cansaço de inúmeras dores, de incontáveis deveres cumpridos, de situações difíceis enfrentadas e vencidas sem a menor pretensão. Ninguém, olhando para ela, diria o seguinte: “Essa senhora se considera um colosso.” Nada, nem um pouco, nem passa pela cabeça dela isso. Por quê? Equilíbrio.        v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/1/1994)
Revista Dr Plinio 268 (Julho de 2020)

Dona Lucilia e a alegria do Natal

Respondendo a uma pergunta, Doutor Plinio narra como em tudo, inclusive nas festas de Natal, Dona Lucilia agia movida por um alto princípio, procurando incutir em seus filhos o amor ao bem e a tudo o que é elevado.

 

No meu tempo de criança não se falava em Papai Noel. Mamãe nunca empregou este termo, que me parece paganizar algo muito mais respeitável e mais antigo, que pouco se ouve falar atualmente; trata-se de São Nicolau.

Tudo em Mamãe se relacionava com coisas muito elevadas

Em minha infância, diziam tratar-se de um santo, que descia do céu vestido de forma muito bonita e distinta, a fim de dar presentes às crianças que se tivessem comportado bem durante o ano.

Eu acreditava muito em São Nicolau, mas, por outro lado, percebia haver nele qualquer coisa de mítico e lendário, que me levava a não me preocupar em imaginar como deveria ser sua figura.

Mamãe possuía grande elevação de alma. Ela levava a vida tranquila, serena e recolhida de uma senhora de casa, a qual estava na direção de uma família pouco numerosa — apesar de morarmos na casa de minha avó, ponto de reunião de toda a família. Habitualmente, percebia-se pelo seu olhar, pelo timbre de sua voz, pela expressão de sua fisionomia, pelos seus gestos, que tudo quanto ela pensava e tinha no espírito se relacionava com considerações muito elevadas. Tinha-se a impressão de que ela comumente olhava as coisas a partir de uma esfera muito alta, eu quase diria metafísica.

Nas menores coisas, um incentivo para ser melhor

Isso se notava nas menores coisas. Por exemplo, ao ver-me brincando, ela me fazia um agrado que se diria igual ao de qualquer mãe para com seu filho. No entanto, partindo dela, o agrado era feito por uma razão elevadíssima, e surgia em meio a considerações que eu — sem, entretanto, explicitar — percebia virem de muito alto e serem feitos de modo muito lógico. Notava também pelo seu agrado que Mamãe me conhecia até o fundo da alma e sabia quais eram as minhas boas e más inclinações. Assim, ela procurava estimular em mim a prática do bem, e, à medida que eu me inclinava ao bem e rejeitava o mal, sua estima por mim aumentava.

Desta maneira, todo agrado que ela me fazia era um incentivo para eu ser melhor o quanto me fosse possível. Isto me habituou a, desde pequeno, procurar ver nas coisas o que elas têm de mais elevado.

Por este motivo eu, sem imaginar propriamente com deveria ser São Nicolau, procurava ver os valores sublimes e até transcendentes que ele representava.

Festa de Natal feita por Dona Lucilia

Isto se fazia sentir profundamente na noite de Natal. Mamãe providenciava uma grande árvore de Natal, adornada com uma porção de enfeites. Esta tarefa, Dona Lucilia nunca deixava ao encargo de empregados, mas ela mesma, com muito esmero, a executava. Para a festa de Natal, ademais de minha irmã e eu, mamãe convidava primos, sobrinhos e outros parentes que constituíam um grande número de crianças.

Em certo momento, descíamos do andar superior da casa, todos de mãos dadas, cantando canções natalinas, até junto à árvore toda iluminada, ao pé da qual se encontrava um presépio com a imagem do Menino Jesus com os bracinhos abertos, que era adornada por Mamãe todos os anos com um vestidinho diferente. Ela pedia, então, para todos se ajoelharem, e rezava uma oração. Tenho a impressão de que ela mesma compunha esta prece. Pois, tratava-se de um transbordar da elevação, da suavidade, da doçura de sua alma. Após esta oração, eu notava que uma alegria superior impregnava tudo. Era a alegria da bondade, da virtude, da retidão, da limpeza, em suma, a alegria da consciência tranquila. Em última análise, tratava-se da alegria de sentir o quanto Deus se comunicava conosco através dos sorrisos do Menino Jesus.

Até hoje guardo com muito esmero a imagem do Menino Jesus usada por Mamãe nessas ocasiões.

A vida do homem virtuoso é mais entusiasmável

Aquilo tudo embebia profundamente a noite de Natal, dando a ideia — como era, aliás, o objetivo de Dona Lucilia — de que a vida do homem virtuoso, quando bem levada, é mais suportável, mais aceitável, incomparavelmente mais entusiasmável do que a vida do homem que não pratica a virtude. Creio que nos dias atuais a educação de uma criança não conta com este cuidado, mas Mamãe o tinha muito vivo.

Terminada a festa de Natal, meus primos voltavam para suas casas, e eu ia logo para minha cama. Dona Lucilia esperava eu estar dormindo para pôr aos meus pés um grande e pesado presente. Quando ainda de madrugada eu acordava ansioso para ver o presente, mais uma vez a valiosa educação que recebi de Mamãe me levava a ser temperante. Eu compreendia que não devia acender o “abat-jour”, e fazê-lo parecia-me uma desordem, não só por acordar os que estão dormindo, mas por um princípio superior, o qual me indicava que a hora de dormir é para dormir, e durante ela não se devia brincar, assim como durante a hora de brincar não se devia dormir.

No entanto, eu ficava imaginando o que seria o presente, e pouco tempo depois, como criança, caía no sono, voltando a acordar ainda algumas vezes.

Quando já estava claro, eu acordava mesmo! Levantava-me, pulava da cama e abria o presente. Era um gáudio e uma satisfação enormes. Ficava à espera de que Dona Lucilia acordasse para mostrar-lhe e receber ainda o abraço, o beijo e a bênção dela, que eram para mim um presente ainda maior do que o de São Nicolau. Isso tudo constituía a alegria quase angélica do Natal, que é quase impossível transmitir a alguém que não a tenha sentido.  v

 

 

Plinio Corrêa de Olvieira (Extraído de conferência  de 27/12/1975)

Beleza da retidão

Dona Lucilia fazia com que seu filho percebesse, continuamente, a beleza da retidão. De modo especial, ela o manifestava através do olhar. E além de ressaltar o que existe de belo na retidão, ela  lhe dava a conhecer o repouso e a serenidade que a alma humana experimenta ao ser reta. Dessa forma ela alimentava na alma dele a inocência, a suavidade, a tranquilidade e a paz.

 

Há no homem concebido no pecado original um aspecto por onde aparecem os efeitos desse pecado que o inclinam para o mal, e outro lado da personalidade humana que corresponde frequentemente à graça e tem uma tendência ao bem.

Paz de alma e a luta contra as más tendências

Assim, forma-se dentro do homem o que os autores espirituais, com uma linguagem primorosa, chamam de “homem novo” e “homem velho”. O “homem velho” é o que nasceu em sua mera  natureza, e o “homem novo” é o que renasceu pelo Batismo. O homem batizado luta contra o não batizado, concebido no pecado original. Ambos estão em guerra contínua. Então, quando se fala  de paz, é preciso tomar em consideração que em uma pessoa concebida no pecado original não há paz entre esses “dois homens”.

O “homem novo”, ou seja, o lado bom do ser humano pode estar em paz quando a pessoa tem sua Fé firme, a consciência tranquila porque cumpre seu dever, confia na Providência e, portanto, sabe que, aconteça o que acontecer, ela enfrenta os males. É uma paz interior que reina na parte mais nobre, mais excelente de sua própria alma.

Essa paz da alma pode e deve ser imensa e muito profunda; é a paz dos justos. Mas a condição dessa paz do justo é ele se manter em guerra contra o “homem velho”, do contrário ele perde a paz,  porque faz concessão ao mal e começa a cambalhota.

Um exemplo ao alcance de todos é quando uma pessoa mantém integralmente a pureza, evitando qualquer mau olhar ou mau pensamento.  Essa pessoa encontra na pureza uma grande fonte de  paz, cuja condição de  subsistência é a guerra contínua contra todas as tendências para a impureza.

Se não houver essa guerra contínua, a pessoa não obtém a paz profunda proporcionada pela pureza. Outro exemplo é a Fé. A pessoa tem uma Fé íntegra, e recusa qualquer tentação, qualquer  pensamento contra a Fé. Ela descansa na certeza, que é reta, íntegra, coerente, lógica. Evidentemente essa é uma grande fonte de paz, mas supõe a guerra contra todas as tendências que no  homem podem levá-lo à dúvida contra a Fé.

Serenidade proporcionada pela retidão

Dona Lucilia me fazia perceber, continuamente, a beleza da retidão. De modo especial, ela o manifestava através do olhar, muito expressivo nesse sentido. E além de ressaltar o que existe de belo  na retidão, dava-me a conhecer o repouso e a serenidade que a alma humana experimenta ao ser reta.

No próprio exemplo de mamãe, ao se analisar as fotografias dela, pode-se constatar essa verdade. Mesmo naquelas em que aparece preocupada, não se nota qualquer agitação de sua parte. Pelo  contrário, o olhar continua a transmitir uma disposição de espírito inteiramente serena. A preocupação com calma representa, aliás, um grande equilíbrio de alma. Qualquer homem, nesta terra  de exílio, passa por preocupações.

Uma coisa, porém, é ficar preocupado; outra é deixar-se tomar de nervosismo, ansiedades, etc.; atitudes estas que mamãe procurava e conseguia afastar de seu coração. Maneira peculiar de se  perceber a paz que havia na alma de mamãe era observá-la enquanto dormia. Com a intimidade de filho, naturalmente, eu a vi inúmeras vezes nos seus momentos de repouso. Via-a também na hora em que despertava, sobretudo no meu tempo de menino e adolescente, quando me despedia dela antes de ir para o colégio: não fazia cerimônia, acordava-a e com ela trocava uns minutos de prosa. Depois que fiquei mais velho, moderei um tanto esse hábito.

Mas naquela época, depois de tirá-la do seu justo descanso, perguntava-lhe: “Meu bem, bom-dia. Como vai a senhora?” E eu  notava que, nela, a passagem do repouso para o estado de acordada era serena, e com o primeiro olhar já todo aberto para a realidade à sua volta. Tinha-se a impressão de que o sono dela era  profundo, restaurador, reparador. A tal ponto que eu a fitava e me vinha este pensamento: “Como deve ser agradável dormir o sono dela!” Mamãe, aliás, costumava dizer que o sono era um imenso benefício que Deus concede aos homens, porque suspende sobre estes as infelicidades da vida.

Então, eu via uma alma à qual não eram poupados sofrimentos, mas que sabia dormir na paz. Portanto muito distante de ser uma alma agitada e nervosa por causa das preocupações, que sempre  nos colhem ao longo da existência terrena.

Jamais se comparar

Uma das coisas que mais agita o homem é a inveja, e esta nasce das comparações. Por isso, comparar-se com os outros é um dos maiores erros que se possa cometer.

Comparando, começa a inveja, o amor-próprio, a cascata dos vícios; em breve, a tentação da impureza está batendo às portas. A tentação contra a pureza, muitíssimas vezes, é filha dessa comparação que agita a pessoa. Uma coisa que eu nunca vi Dona Lucilia fazer era comparar-se. Só fazia comparação no seguinte sentido: quando passava pito em minha irmã ou em mim, e havia  uma criança que estava procedendo muito bem naquele ponto, mamãe dizia: “Veja tal criança!” Mas nesse caso tratava-se de uma emulação na virtude, e isso está muito bem. Fora disso, nunca fazer comparação com ninguém.

Assim ela alimentava em minha alma a inocência, a suavidade, a tranquilidade e a paz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/6/1982)

Guerra de tendências

A vida de Dr. Plinio, analisada à luz da batalha das tendências por ele travada e transposta para a história dos povos, permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”, que constitui, em grande parte, as memórias dele.

A primeira sensação que tive, relacionada com a Revolução tendencial, foi a da pressa. Entre a geração de mamãe e a minha havia uma intermediária, de primos. Dona Lucilia tinha, em números redondos, trinta anos a mais do que eu. Assim, entre ela e mim havia primos quinze anos mais velhos do que eu, parentes e vários amigos da família.

Choque entre dois modos de ser

Pouco depois de Dona Lucilia, começava a aparecer uma geração na qual a alegria do viver estava deslocada. Não era mais o bem-estar daquela placidez, com tempo diante de si, mas uma forma de vivacidade que consistia em andar e falar depressa, em estar continuamente alegre, satisfeito, em contar coisas tendentes ao engraçado, ao divertido, ao sensacional.

Eu presenciei, mas de forma confusa, o choque desses dois modos de ser e notei que, ou me engajava nesse modo de ser novo e mudava minha personalidade, abandonando essa placidez e tomando esse trem que ia para a frente, ou seria tido como sem graça por essa gente nova. Era toda uma orquestração tendencial que ia nascer, na qual a estabilidade fecunda, pensativa, forte, mas compassada, cedia lugar ao corre-corre em busca de prazeres, agitação e excitação.

Conferi esse modelo comigo mesmo, perguntando-me, entre outras coisas, se me adaptaria a isso. E pensava: “Eu não sou assim. Sou tranquilo, gosto das coisas plácidas e que andam passo a passo. Não quero essa alegria saltitante.”

Por exemplo, via determinada pessoa entrar em casa assobiando a última música da moda. Alguém perguntava:

— Que música é essa?

Gargalhada…

— Ah, você não sabe?! É tal música assim.

E sentava-se com uma cara radiante, quando eu não via razão para estar radiante. Aliás, não vejo nenhuma necessidade de passar a vida radiante, mas sim de modo tranquilo. É uma coisa completamente diferente. E concluía: “Não tenho embocadura para isso. Se fosse meter-me nisso, falsearia minha personalidade. Mas, pior, não se deve ser assim. Deve-se ser como quem? Como mamãe. Ali está certo, está direito, está bom…”

Estabelecia-se entre mim e os adeptos da nova mentalidade um diálogo de surdos que terminava amavelmente porque todo mundo era amável, mas com um pensamento assim na cabeça deles: “Esse menino não tem jeito… É um desmancha prazeres mesmo!” E eu com outra reflexão: “Essa gente não tem jeito. Não se pode viver perto deles. Eu vou destoar mesmo.”

Mecanização geral da vida

Essa impressão acentuou-se à medida que a influência do pós-guerra, carregada de vida mecânica, se intensificou. Em São Paulo, os carros puxados a cavalo foram ficando mais raros, enquanto os automóveis e bondes mais numerosos. A mecanização geral da vida foi entrando e dando um ritmo mais apressado a todas as coisas.

Fiquei colocado diante da seguinte situação: eu tinha tendência à lentidão e à preguiça. Sentia a preguiça como uma espécie de peso em cima de mim, que me tornava todos os movimentos lentos, lerdos, pesados, desagradáveis, e me fazia encontrar gosto na inação. Isso devia ser vencido por uma vida ativa. Ora, vida ativa só era possível no ritmo daquela que todo mundo levava, porque era necessário tomar o bonde, ir para o colégio, voltar correndo, ir ao dentista, depois passar por casa para fazer não sei o quê, e isso precisava ser feito dentro daquela velocidade, não tem remédio, do contrário “perdia o bonde”.

Donde uma espécie de reajuste interno tendencial para combater a preguiça, nunca permitindo deixar para mais tarde o que eu pudesse fazer logo. E começando sempre, se  pudesse optar, pelo mais desagradável. Porque para o mais agradável se tem ânimo; o difícil é fazer logo o mais desagradável, de maneira a nunca me permitir, nesse ponto, moleza nenhuma, mas dentro do corre-corre dos pés conservar a tranquilidade do modo de ser e da alma, de molde a dar, com a estabilidade antiga, uma force de frappe1 nova, juntando as duas reações.

Contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza

Ligada a isso, outra coisa tornou-se clara para mim: o contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza. A castidade tem isto de próprio: quem a vive verdadeiramente é comedido e encontra sabor em tudo, até nas menores coisas. Ela se contenta com pouco e se alegra muito com coisas pequenas; não precisa viver correndo atrás de delícias. Um pequeno prazer, um pequeno atrativo já a regozija inteira. Quando lhe acontece de receber uma delícia, o homem puro se alegra também e, cessada a delícia, ele não entra na depressão, mas continua a vida animado pela alegria que teve.

No homem impuro é tudo ao contrário. As alegrias pequenas não lhe satisfazem, parecem bagatelas. As coisas que se repetem lhe parecem enfadonhas. Ele só quer alegrias enormes e, quando elas passam, cai na depressão. Antes de chegar a alegria, ele fica na torcida; depois da alegria, vem a frustração. Essa é a vida do impuro. Não preciso entrar em descrições, porque todos nós vemos o mundo encharcado disso.

Eu notava muito o contraste nesse ponto entre pessoas de minha geração, em torno de mim, sonhando com maravilhas, e o desdém que tinham pelas coisas agradáveis e pequenas que a vida oferece. Eu me regozijava, às vezes, com essas coisas, mas não comentava com eles. Por exemplo: sábado à noite, tendo todo um domingo diante de mim, eu me deitava. Era o dia em que, em minha casa, se trocava a roupa de cama. A cama dava impressão de inteiramente nova; quarto tranquilo, todo revestido com um papel de parede de que eu gostava muito, um quadro de Nossa Senhora em esmalte, uma mesinha com pequenos objetos. Eu me deitava e pensava: “Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã o dia inteiro de repouso; irei de manhã à Missa, depois voltarei para casa e vou brincar com os soldadinhos de chumbo; chegada a hora do almoço, terei um superalmoço. À tarde, vou ao cinema e depois é o desfile nas confeitarias. Por fim, janto. Como é agradável deitar-me agora na previsão desse dia!”

Mas eu via os outros de minha idade indo dormir; era completamente diferente. Não tinham vontade de que chegasse a hora de repousar, queriam ficar conversando e mexendo. Era preciso ir arrancando-os para a cama, meio brigados com a governanta. A hora de dormir era triste porque iam entrar nas sombras da noite. Para mim as sombras eram amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava ouvindo um pouco os grilos num terreno baldio perto de casa, com um cheiro de vegetação que vinha dali. Logo passava da reflexão para o sono. Contudo eu não ousava elogiar isso diante de ninguém, pois percebia que não sentiam isso assim.

A hora de levantar também me era agradável. Mas levantar sem corre-corre; sentar na cama e rezar, tomar um pouco a noção das coisas que me rodeavam: a luz que entrava pela veneziana, os sons domésticos, os ruídos da rua, a vida que começava a pulsar em torno de mim. Depois me levantava com calma e, primeira coisa: “Bom dia, mamãe!”, depois fazia minha toilette e começava a vida.

Outros se jogavam para fora da cama. Eu pensava: “Mas o que é isso? Essa eletricidade perto de mim!” Tinha vontade de dizer: “Fora!” Mas não podia, tinha de engolir por inteiro. Se fosse algum primo que ia passar a noite comigo e conversava com exagero, eu respondia pausadamente até que ele também se domasse um pouco. Outra coisa altamente apreciável para mim, mas não para ele: tomar café com leite, pão com manteiga. Não tinha geleia, nem queijo, nem outras delícias. Era o comum. Mas um pão no qual se sentia o bom gosto do trigo, uma manteiga feita do genuíno leite, passada abundantemente sobre o pão. Um prazer simples, mas cheio de suco para uma alma equilibrada.

Uma espécie de xadrez humano

Eram tendências que se chocavam. Resultado: eles gostavam de brigar, eu detestava a briga. Discussão, sim, é agradável, pois entra o florete do argumento. A meu ver, é a mais bela forma de esgrima que o espírito humano excogitou. É lindo! Disso eu gostava. Mas, brigar…! Então um diz para o outro: “Eu te parto a cara!” Que intenção é essa? “Primeiro, com a minha não pode. A sua, não tenho o menor intuito de partir, pela simples razão de que não perco tempo com ela. A sua cara me desinteressa do modo mais total possível. Nem sequer para quebrar, ela me importa. Concebo bem que você tenha as mesmas disposições a meu respeito. Portanto, cada um com sua cara, e não quebre a do outro.”

O senso da hierarquia, muito desenvolvido em mim, vinha de todo o ambiente doméstico de que falei, marcado pela recusa à pressa. No momento em que recusei a pressa revolucionária, preservei dentro de mim o senso da hierarquia. Porque a vida com pressa é feita sem hierarquia, as pessoas não têm hierarquia de valores e, no convívio, não existe a hierarquia de pessoas. Elas se cortam a palavra umas às outras. E me causava muita estranheza exatamente a vida igualitária dos meus companheiros de colégio.

Ficam assim apresentados alguns problemas com os quais me deparei ainda em pequeno: uma escolha e uma definição temperamental e tendencial; um choque entre uma posição e outra; depois esses choques se multiplicam, porque a posição inicial se desdobra em posições afins, tanto de um lado quanto de outro, formando uma guerra de tendências.

Então, havia pessoas com as quais eu estava em guerra total, ou seja, eram completamente opostas a mim. Elas percebiam isso, como eu também, e inaugurava-se uma verdadeira batalha, disfarçada pela educação comum. Quer dizer, não se podia mostrar, mas havia luta.

Eu notava também a existência de indivíduos divididos tendo, em parte, tendências boas que afinavam comigo e, em parte, tendências más que afinavam com a Revolução. Esses constituíam uma “terra de ninguém” entre os dois extremos de tendências opostas, e que estavam na guerra total, procurando acentuar nos intermediários as tendências afins para puxá-los ao seu próprio campo, constituindo uma espécie de xadrez humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução e o semicontrarrevolucionário, apresentados tendencialmente e já entrevistos no tempo de pequeno. Assim, minha vida de criança e de mocinho era levada nessa batalha das tendências, mas sem uma conscientização inteira.

Montando um vocabulário como quem confecciona uma joia imensa

Que papel faz dentro disso a conscientização?

Por incrível que pareça, sentia tudo isso em pequeno, mas, foi tal a inibição causada pelo fato de ninguém aludir a tais considerações, que só vim a explicitar essas coisas mais ou menos a partir dos meus vinte e cinco anos, e devagar. Implicitamente, eu tinha torrentes disso; porém, não saberia explicitar para os outros, como não saberia fazê-lo para mim. Ademais, para saber por em termos é preciso ter toda uma linguagem. É quase outra ordem da realidade e outra paragem do espírito humano, que exige um vocabulário próprio para se chegar a explicitar.

Esse vocabulário não se procura no dicionário. Encontra-se testando: “Tal palavra serve, tal outra não serve. O que quer dizer essa, o que quer dizer aquela?” No uso do dia a dia, reter as palavras: “Essa serviu para explicar tal coisa, vou reter; aquela outra palavra vai me servir, mas em tal ocasião…” Assim ir montando o vocabulário como quem monta uma joia imensa, com milhares de pedras preciosas ou semipreciosas, para poder explicitar essas coisas. Isso não faz uma vida mole, mas uma existência sumamente entretida. No dia em que o homem pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei uma palavra!”, esse foi um dia positivo na vida dele.

Quando explicitei isso para mim mesmo, consegui montar as regras que instintivamente eu tinha seguido. Então, em grande parte, a obra Revolução e Contra-Revolução constitui minhas memórias. Não que eu tenha pensado naquela ordem teórica, histórica, filosófica. Esses pensamentos não afloraram em minha cabeça assim, mas constituíam um magma fecundo no qual as ideias iam se ordenando.

As batalhas internas de um povo são parecidas com as de uma alma

Em sentido figurativo, cada povo tem uma cabeça, um espírito, uma alma, à maneira de um homem: o que neste são tendências diversas, naquele são partidos políticos, correntes filosóficas ou artísticas. As batalhas internas de um povo são extraordinariamente parecidas com as de uma alma. Logo, é conhecendo as lutas internas de nossa própria alma e da dos outros que interpretamos bem os fatos históricos.

Minha vida analisada e reanalisada à luz da batalha das tendências por mim travada, e transposta para a história dos povos, permitiu-me uma remontagem da minha experiência, formando princípios, dos quais deduzi uma teoria e com esta elaborei um livro.

Neste sentido, esse livro constitui as minhas memórias, mas não só. É a minha previsão. Porque, como na luta das tendências, percebi, com a ajuda de Nossa Senhora, quais eram as regras do jogo, daqui por diante sei como esse jogo deve continuar. Sempre aprenderei algo de novo, porque as tendências são insondáveis, e não presumo esgotá-las. Qualquer alma humana tem um fundo incognoscível. Entretanto, é possível conhecer muita coisa e, por aí, saber o traçado do futuro. A previsão política é, em boa medida, a análise de como estão as tendências hoje e no que elas vão dar amanhã. Com isso, a previsão política é fecundada como a água fecunda a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento previsor está o conhecimento das regras das tendências. Essa é a vantagem de conhecer as tendências.

Entretanto, todas as coisas verdadeiramente muito elevadas são passíveis de serem exploradas. Por exemplo, a música. Quanta coisa magnífica se faz com ela, mas também quanta vilania! Todas as artes são assim. Ora, agir nas tendências é uma arte; logo, pode ser tomada para o melhor e para o pior.

Onde está a dignidade disso? Quando se vive toda essa intensa vida das tendências, há determinados momentos em que o espírito se distancia desse jogo e faz a pergunta: “Mas, afinal, o que aqui é verdade, o que é erro? O que é bem, o que é mal?” Passo, então, a fazer disso uma análise lógica, com argumentos, raciocínios, para saber como uma coisa se costura na outra. E faço, eu mesmo, a crítica do meu pensamento para verificar se ele enfrenta as objeções. Então, vemos surgir, à maneira de um píncaro de neve sobre uma montanha muito verde, a lógica fria, rutilante e, dentro da sua frialdade, espelhando melhor o Sol do que a relva nas encostas da montanha. E podemos formular a teoria.

Um modo de ser eminentemente hierarquizante

Por exemplo, eu tenho um modo de ser eminentemente hierarquizante. Não basta dizer que possuo esse modo de ser para provar que é justo que isso seja assim. Quem me dá o direito de ser assim? A ordem natural das coisas feita por Deus é assim? Se for, então é bom que eu seja assim. Do contrário, não é bom. Porque a medida de todas as coisas de nenhum modo sou eu, que fui criado por Deus. A medida de todas as coisas é Ele. O que Ele ensinou a esse respeito? Por que Ele ensinou? Qual foi a intenção d’Ele?

E aqui entraria a teoria esplendorosa, magnífica, de São Tomás que contraria o igualitarismo. Explica o Doutor Angélico que, ao criar seres que refletissem suas infinitas perfeições, Deus não poderia fazer um único ser, porque qualquer criatura é tão insuficiente para realmente espelhá-Lo que ela seria caricata.

Mas essas criaturas, por sua vez, para O refletir têm que ser diferentes umas das outras. Se Deus criasse dois seres iguais, Ele cometeria o erro que um gago pratica quando pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu que-quero.” Porque na palavra humana cada sílaba tem um som. O resto é linguagem de criança, ou de uma pessoa que não tem a locução normal, bem construída. Então, por causa disso, Deus formou criaturas diferentes, e assim sendo, criou-as desiguais, pois não há seres diferentes sem que um seja superior ao outro em algum ponto. Logo, ou não haveria Criação, ou existiria hierarquia.

Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc 2, 14). No fim, o cristal de rocha do raciocínio, em arestas tomistas definidas que rutilam ao Sol, é o encanto e a glória da montanha. Assim, nos entusiasmamos tanto com as tendências quanto com o raciocínio, e glorificamos a Deus que nos deu esta riqueza: sermos verdadeiros instrumentos de música de tendências e cristais reluzentes de raciocínio.               v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Do francês: força de ataque.

Ação de presença de Dona Lucilia

A ação de presença de Dona Lucilia não era invasora e conquistadora, mas muito suave. Dr. Plinio sentia muito a sua presença no apartamento em que ela residiu por longo tempo, na Rua Alagoas. Quando ele ia ao seu escritório e se sentava numa cadeira de balanço que ela costumava usar, tinha a sensação de estar em seus braços, tal como em sua infância.

 

Uma das coisas mais difíceis de explicitar é a ação de presença. Há na ordem posta por Deus mil ações de presença. Por exemplo, o prédio velho do Êremo de São Bento(1). Dadas as ideias que eu tinha a respeito de São Bento de Núrsia, Patriarca dos monges do Ocidente, quando transpus os umbrais deste prédio pela primeira vez tive uma impressão singular, toda ela pessoal, e pensei o seguinte: “Mas, essa é a casa de São Bento! Só me falta encontrá-lo em qualquer canto”.

Exemplo de uma ação de presença

Essa é a mesma impressão que tenho até agora. Não há uma vez em que eu entre ali e não sinta uma verdadeira delícia, um verdadeiro regalo de minha alma. A minha velha admiração pelo espírito beneditino começou quando, meninote ainda, ouvi tocar os sinos do Mosteiro de São Bento, o famoso Cantabona, sério, grave, resoluto, indomável e harmonioso. Essa impressão perdura em mim.

Quando ouvi o Cantabona pela primeira vez, me veio a ideia seguinte, não com a precisão que estou dizendo agora, mas implicitamente era bem isto: certas almas têm internamente um timbre como os sinos. Eu até me lembro de ter lido um livro de poesia muito de segunda classe, pois estava doente e não tinha coisa melhor para folhear; não eram poesias imorais, mas uma coisa assim pseudo-literária. De repente, encontrei uma frase que dizia só isto:

“Sino, coração da Igreja; coração, sino da gente.  Um sente quando bate, outro bate quando sente.”

Esse poeta débil pegou bem essa analogia. Todo homem tem interiormente um sino. E eu me perguntava como seria a alma daquele do qual se poderia dizer que o sino do Mosteiro de São Bento era como o coração dele. Naturalmente a resposta é: São Bento!

Depois, tudo quanto li sobre São Bento – não foi muita coisa –, quanto peguei a respeito da Ordem Beneditina, frequentando o antigo Mosteiro de São Bento, dava-me esta impressão: algo que era semelhante ao toque do Cantabona.

Alguma coisa que se levantou em Núrsia, andou, passou também através de Cluny por glórias incríveis e por humilhações inenarráveis. Depois, o que foi a decadência da Ordem beneditina no “Ancien Régime” não tem palavras. No século XIX, Dom Guéranger realça a Ordem Beneditina, mas já os beneditinos que conheci na França, posteriormente, quão inferiores a Dom Guéranger… De repente, encontro em São Paulo essa afirmação. Isso é ação de presença. Como ela se exerce? É uma graça. Porém, como essa graça se torna presente, se faz sentir, não sabemos.

Há coisas que foram feitas para ficarem implícitas

Ora, se um prédio pode ter uma ação de presença, a “fortiori” os seres humanos. Porque, quer na ordem da natureza e, sobretudo, na ordem da graça, a presença de um ser humano é incomparavelmente maior do que a de um prédio. A graça pode estar presente num prédio como um jarro com flores. É uma coisa extrínseca ao prédio que alguém põe ali e ameniza, adorna o ambiente. Outra coisa inteiramente diferente é o modo pelo qual a graça habita na alma. Para usar uma comparação, claudicante como todas as comparações, tem algo de um enxerto que passa a viver uma vida nova na alma e que lhe dá um “élan” novo que a alma não tinha. Mas acabam convivendo no sentido mais íntimo da palavra, a pessoa passa a ter as duas vidas, natural e sobrenatural da graça, formando um só existir e um só ser.

Nessas condições, é claro que um Fundador possa tornar sensível a presença dos ideais de sua fundação, e a Providência tem desígnios especiais com esse ou aquele homem. Esta é a ação de presença. Entretanto, como explicitá-la? Como descrever o indescritível? Até vou dizer mais, é desse gênero de coisas muito imponderáveis que, se houvesse alguém capaz de dizer completamente o que era, empobreceria o tema, porque são coisas feitas para serem vistas no imponderável. A linguagem explícita tem um valor muito grande, mas há coisas que foram feitas para ficarem implícitas. E explicitar certas implicitudes seria o mesmo que acender dentro de uma catedral um farol enorme que tornasse tudo claríssimo. Uma catedral pede penumbras.

Há pouco vi um vitral e achei-o muito bonito. Mas não teria essa impressão se não houvesse penumbra no ambiente. Em nossas almas há assim não sombras, mas penumbras, e estas fazem parte do convívio. É até onde eu sei ir neste tema. A orla do grande mar da ação de presença é esta. Para além disso são vagalhões indecisos.

Isenta de superficialidade de alma

Eu pensava em mamãe enquanto fazia estes comentários. Ela, chamada para aquele ambiente da vida privada na qual viveu sua longa existência, não tinha essas ações de presença invasoras e conquistadoras. Possuía, pelo contrário, uma ação de presença muito suave de quem ligeiramente diz isto: “Se queres entrar nessa presença, há algo para ti. Se não queres, passa que eu nem te detenho, nem te peço, nem te reclamo nada, te olho com benevolência e rezo por ti. Podes passar…” Mais nada.

Era preciso que uma pessoa saísse de um certo estado de alma por onde se podia olhá-la como uma senhora qualquer, porque quem quisesse fazer isso era perfeitamente fácil, não havendo da parte dela um gesto, nem ideia de se impor.

Para mim, como eu a senti, era uma presença ao mesmo tempo riquíssima de expressão no primeiro contato, mas proporcionava outras impressões mais profundas, mais elevadas, mais ricas à medida que se ia caminhando para a frente de um modo insondável, em que a mesma impressão originária se acentuava. Mas se acentuando, revelava belezas novas; e, revelando belezas novas, ia atraindo e ensinando mais.

Era naturalmente uma presença muito variada e sempre muito expressiva para quem quisesse prestar atenção. Havia uma coisa que ela não tinha: superficialidade de alma. Aquele estado de espírito por onde se pega tudo assim pela rama, isso ela não possuía; nunca a peguei numa situação dessas. Se tivesse acontecido, o meu amor a ela decrescia um tanto. E se fosse crescente, empalidecia.

Discrição, respeito, consideração e humildade

Quando ela era mais moça, fazia bolos e doces, um deles chamado pavê, com biscoitos e chocolates. É um doce gostoso, mas corrente. Porém o bolo super-ornado, recoberto de glacê, umas balazinhas cor prata, umas guirlandas formando um desenho, desconfio que para cada aniversário ela compunha um traçado novo.

Tendo ficado mais idosa, de repente o bolo desapareceu. Eu fingi que não notei. Vi que as forças não davam mais e que ela mesma queria fazer, não deixava para a empregada.

Eu me lembro do jeito dela na copa de nossa casa, na qual há uma espécie de armarinhos, onde preparava o bolo. Acho que não colocava no forno, mas a massa ela mesma fazia. Ela ficava ali em pé, preparando, industriosa, mais para cá, mais para lá, ajeita ali…

Ela estava adiantada em catarata, e notava-se que tinha uma certa dificuldade de ver, mas mexia para cá, mexia para lá, empenhada. Era o pavê ideal dela.

Eu olhava só de relance para deixá-la inteiramente à vontade. Depois ficava trabalhando, rezando, ou fazendo qualquer coisa, mas vendo o viver dela. Em geral isso saía quase à última hora, e ela sempre um pouco apressada. Por sofrer do fígado, precisava descansar em certa posição. Então ia nuns passozinhos miúdos, rápidos, para o quarto dela a fim de ter um grande repouso. Depois se vestia, arranjava-se, iam chegando as primeiras pessoas da família, algum amigo, e começava a festa de aniversário. Quando chegava a hora de passar para a sala de visitas, ela estava conversando. Aí eu prestava atenção na preocupação dela – ultra-disfarçada – na hora em que entrassem os doces, para ver se eu comia bastante daquele que ela fizera. Se eu tivesse comido muito era porque o doce estava bem feito. Se comesse pouco, ela tinha fracassado… O doce era sempre bem feito.

Mas ela me conhecia tão, tão bem, que eu nunca fiz essa jogada – alguém julgaria acertada – de comer mais do que tinha vontade para agradá-la, porque ela sentia perfeitamente se eu estava gostando ou não do doce. Comia tanto quanto queria, mas eu via que ela olhava um pouco de relance o doce para ver se, cortado, estava com o aspecto que ela queria; depois um relance nos meus olhos para ver o que eu estava achando.

E se eu não dissesse nada, ela também nada dizia. Era, portanto, uma espécie de discrição e respeito pelo outro, ainda que fosse filho, consideração e humildade. Quando ela prestava seu serviço, se retraía, não pedia e não impunha mais nada, ela tinha atendido.

Saudades e esperança de reencontrá-la

Ora, o que estou dizendo aqui não é nada. A profundidade, o modo de doçura que havia em mamãe, e algo por onde ela, no fundo, reportava isso a Deus é uma coisa que precisava ter sido vista. Quem vê o Quadrinho(2) tem uma ideia. Era assim o dia inteiro, sob as mais variadas formas, constituindo um tipo de ação de presença inenarrável, que ainda está na casa dela.

Pelas escrituras públicas, sou o dono do imóvel, mas para mim aquela é a casa de Dona Lucilia, eu me regalo que seja casa dela. Para mim o charme da casa é ser a casa de Dona Lucilia, e tenho a impressão de que ela está presente lá. De que jeito, de que modo, também não sei. Mas quando se atende no telefone: “Casa de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira!”, eu teria vontade de retificar e dizer: “Não! Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira, porque é a casa dela”.

Mamãe viajou raras vezes e saía pouco à rua. Quando era mais moça naturalmente saía um pouco mais, como todo mundo. Nas raras vezes em que ela viajava, eu ainda morava em casa de minha avó. Era dessas casas patriarcais com muita gente morando. Quando ela viajava, eu tinha a impressão de que a casa inteira estava vazia e que nada era nada. Podia ter gente, podia não ter gente: mamãe não estava, a casa estava vazia.

Pelo contrário, quando passamos a morar no apartamento da Rua Alagoas – só ela, eu e meu pai, mas ele viajava muito para negócios e, portanto, durante a maior parte do tempo estávamos apenas nós dois –, e eu viajava deixando-a só, tinha a impressão de que o melhor de mim mesmo ficara em casa rezando, e era a parte mais banal de mim que tinha saído. De maneira que, quando voltava para casa, eu tinha a impressão de que me encontrava com o melhor de mim mesmo e mais algo, que era a casa habitada por ela.

É o que ainda sinto quando volto para casa. Vou jantar, rezo as orações que mamãe rezava e sempre me lembro do lugar onde ela ficava durante o jantar, a cabeceira da mesa. No almoço ela sentava-se em frente a uma janela que dá para a Praça Buenos Aires, para ver a vegetação. Então não era a cabeceira, mas um lado da mesa. Entretanto, para fazer o gosto dela, eu concordava inteiramente.

Sempre que me sento junto à mesa, lembro-me dela, de como ela poria o braço… Mas com esta circunstância: tenho ainda a impressão de que ela está presente e que eu me encontro, de algum modo, com o melhor de mim mesmo quando estou na casa dela. A tal ponto que eu sinto mais a presença dela em casa do que junto à sua sepultura. E sinto a presença dela intensamente no quarto em que mamãe dormia, e também no resto da residência, porque ela habitava tão densa e tão ricamente a casa.

Inclusive no meu escritório. Quando me sento numa cadeira de balanço na qual mamãe costumava sentar-se, tenho a sensação de que seria como quando eu era criança: ela me punha nos braços dela. E assim são minhas saudades, a minha admiração e a minha esperança de reencontrá-la.

Um raio de luz lilás e prata

Outro dia passei pela Rua Vieira de Carvalho(3) onde nós moramos por alguns anos, no quarto andar de um prédio. Nossa sede ocupava o sexto e o sétimo andares, e todas as noites eu ia com membros de nosso Movimento para um restaurante chamado Fasano. Não sei de que maneira ela, que não ouvia bem, intuía mais ou menos quando descíamos para ir ao restaurante.

Após a refeição, ficávamos ainda conversando durante algum tempo na calçada. Ao sair do restaurante, eu batia naturalmente os olhos no prédio em frente. Evidentemente olhava para o quarto andar, que possuía uma janela quadriculada, e a via sempre no mesmo quadrículo, exatamente como está no Quadrinho, olhando. E todo o tempo em que ficávamos ali fora, às vezes era muito, eu via aquela cabecinha olhando. Pela discrição dela, não fazia nenhum sinal, mas estava profundamente entretida. Quando nos despedíamos, ela percebia que eu ia atravessar a rua e subir.

Então, ela não ia abrir a porta, mas ficava por ali rezando – a imagem do Coração de Jesus estava perto da janela. Eu abria a porta, entrava e ia falar com ela. Mamãe, às vezes, fazia algum comentário: “Como esse ou aquele te prendeu longamente…”, mas sem rabugice. “Em certa altura, tomei um susto porque passou um automóvel e quase pegou um de vocês…” Eram coisas assim.

O Quadrinho me dá a impressão exata daquela que eu via na janela. Era aquele raio de luz lilás e prata que atravessava a Rua Vieira de Carvalho bem larga, com umas árvores magníficas, mas que não atrapalhavam o caminho, e chegava até mim, que sorvia aquilo.

Se me fosse dado voltar ao quarto andar eu voltaria? Não sei. Não é melhor ficar com a imagem que tenho na memória? Nós mudamos de residência, o Fasano fechou, o trânsito se tornou torrencial e inundou aquilo. Eu tenho o Quadrinho e a Consolação. Mais do que isso, eu tenho a esperança do Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/8/1980 e 20/11/1980)
Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

1) Localizado em São Paulo, bairro Jardim São Bento.
2) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
3) Situada no Centro velho de São Paulo.

Dona Lucilia e o mar

Instado por jovens discípulos a relacionar seu encanto pelo mar com seu filial afeto por Dona Lucília, Dr. Plinio demonstra o quanto a contemplação do olhar de sua bondosa mãe o incitava a admirar, ainda mais, o mar de perfeições postas por Deus em Maria Santíssima.

 

Pensando sobre o mar, múltiplas vezes lembrei-me de mamãe. E o por onde ela mais me recordava o mar, era o olhar. Olhar amplo, profundo, sereno, mas ao mesmo tempo firme e movimentado como o dela, poucas vezes em minha vida eu encontrei; se é que encontrei…

Pensamento que se ”move” como as ondas do mar

Lembro-me perfeitamente daquela fotografia dela, sentada sobre um banco de madeira e com a mão no rosto, numa atitude evidentemente contemplativa. O vaivém de seus pensamentos me davam a impressão do movimento nobre e sereno das ondas do mar, quando estão fora da tempestade, mas o mar não está parado.

O mar é bonito, sobretudo quando não está parado nem agitado. Mas quando movimentado, ele tem vida e é belo. E ao contemplar o olhar profundo, escuro, mas cheio de claridade de mamãe, eu gostava enormemente de pensar no mar.

Na última vez que estive junto ao mar, havia diante de mim uma linda fotografia de Dona Lucília, em tamanho quase natural, representando-a sentada num banco, como há pouco referi. E eu pensava: “A mente e o coração dela são grandes como o mar!”

Portanto, considerando o mar, mais de uma vez — ainda agora — pensei nela. Olhando para ela, quantas vezes pensei no mar!

Soldados de Maria

Que ela reze por vós, e vos dê também a compreensão de tudo quanto havia de providencial, de belo, de enlevado que Nossa Senhora pôs na alma dela, para que sejam soldados do mar da Contra-Revolução, nesses dias de agitação. Soldados de Nossa Senhora é o que acima de tudo queremos ser.

Meus caros, tenho que ir andando. Mas eu vos vi um pouco, e já me deu satisfação. O mar é assim: quando passamos por ele e olhamos um pouco, já vimos muito.

Agora, o que me resta é rezar convosco por vós, ante Maria que é o mar, o oceano incomensurável no qual Nosso Senhor colocou qualidades perfeitas e magníficas. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/10/1993)

Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

Formadora exímia

Vendo Dona Lucilia tão meticulosa, precisa e exigente — embora bondosa e suave —, constituiu-se em Dr. Plinio um essencial aspecto de sua personalidade: a combatividade contrarrevolucionária.

 

No que Dona Lucilia concorreu para que eu fosse contrarrevolucionário?

Enganar-se-ia quem supusesse que ela fez discursos, explicando que se deve ser combativo e contrarrevolucionário. Ela realizou uma coisa muito melhor, mais límpida, muito mais clara. Foi o seguinte: mamãe pôs em meu cérebro as seguintes coisas:

Em primeiro lugar, que Deus é o Ser supremo, Criador de todas as coisas e, portanto, merece nosso amor primordialmente. Mais do que à mamãe, eu deveria querer bem a Deus. Isso ela me ensinou muito bem, com o talento que têm as boas mães de falar aos filhos, de maneira que estes ouvem a voz delas como ao longo da vida não ouvirão voz nenhuma.

Antes de minha irmã e eu aprendermos a dizer “papai” e “mamãe”, aprendemos a dizer “Jesus”. Minha irmã era um ano e meio mais velha do que eu. Mamãe, estando de vez em quando em seu quarto, arranjando alguma coisa, colocava minha irmã nos braços e, apontando com um dedo para a imagem de Nosso Senhor, de modo que os olhos da criança acompanhassem, dizia-lhe sorrindo afetuosamente, meigamente: “Onde está Jesus? Jesus está ali. Agora repita: Jesus, Jesus.” Minha irmã, que tinha muita vivacidade, respondia: “Jesus, Jesus.”

Depois ela fez a mesma coisa comigo. De maneira que mais tarde, quando chegava a hora, espontaneamente íamos aprendendo a dizer “papai”, “mamãe”, como todas as crianças.

Antes e acima de tudo, precisamos cumprir os Dez Mandamentos 

A segunda ideia é que, em relação a Deus, nós temos deveres os quais são mais importantes do que as obrigações para com qualquer pessoa na Terra. Devemos obedecê-Lo antes e acima de tudo, cumprindo os dez Mandamentos.

Já no meu tempo de criança — nasci em 1908 —, a preocupação principal de um grande número de paulistas era ficar rico. Ficou rico, acertou na vida. Não ficou rico, foi um nulo. Perdeu fortuna, tornou-se pobre, foi um elemento negativo na vida, desprezado por todo mundo.

Mamãe dizia o contrário: “Eu prefiro ter um filho empobrecido, tido em conta de nada, mas que cumpra os Mandamentos da Lei de Deus, do que um filho rico, a quem todo mundo faça cortesias, mas que não pratica os Mandamentos. A primeira obrigação é fazer a vontade de Deus; as outras coisas vêm depois.”

Fazer a vontade de Deus significa conhecer o que Ele ensinou e cumprir exatamente o que Ele mandou. Não se pode relaxar, dizendo: “Dou tal jeitinho.” É preciso, antes de qualquer outra coisa, cumprir inteiramente a vontade de Deus com amor.

“Uma espécie de libré da Revolução”

E, pelo seu modo de ser, ela era muito minuciosa nas coisas. Nos tempos de minha infância tudo era diferente de hoje. Atualmente, as senhoras compram roupas feitas em lojas. Naquela época, para tornar o trabalho mais cômodo, mandavam vir uma costureira em suas casas. Eu vi muitas vezes mamãe experimentar vestido com a costureira. Notando algumas dobrazinhas, mamãe dizia: “Aqui falta não sei o quê. Ali precisa fazer tal coisa”, até que o vestido ficasse na perfeição, porque o que ela fazia era perfeito.

Lembro-me de que, quando se tratava de fazer roupas para nós, mamãe também mandava vir a costureira, para elaborar uma roupa de menina para minha irmã, e para mim um traje de menino.

Quando chegava a minha vez de experimentar a roupa, eu tinha que ficar de pé, e Dona Lucilia dizia à costureira:

— Olha aqui, as costas não estão caindo bem. Por favor, ponha um alfinete aqui no paletó do Plinio e vamos ver se assim fica melhor.

A costureira objetava:

— Não vai bem, Dona Lucilia, porque se prende aqui, puxa lá.

E mamãe:

— É verdade, então vamos pensar um pouco onde colocar esse alfinete…

E isto ia de alfinete em alfinete, e eu já não aguentava mais…

Para escapar das provas das roupas, certo dia eu disse a Dona Lucilia:

— Olha mamãe, deixa que eu mesmo me arranje com o meu alfaiate.

E comecei a ir a qualquer alfaiate no centro da cidade, que não tinha interesse em fazer uma boa roupa, nem eu dava a mínima importância aos meus trajes. Ele punha os alfinetes onde queria, eu dizia que estava muito bom. Quando eu vestia a roupa pela primeira vez, eu nem prestava muita atenção, porque achava que aquele traje era uma espécie de libré da Revolução. É claro que eu tinha razão. Aquilo não era uma roupa minha; a Revolução é que estava impondo tais trajes e eu os usava com relaxamento ostensivo, desdenhoso, fazendo pouco caso.

Servir a Deus com ufania

Mas aprendi com mamãe que as coisas verdadeiramente sérias devem ser feitas até o último ponto do exato; por exemplo, a Doutrina Católica. Se um Papa ensinou uma coisa, gozando do privilégio da infalibilidade, falando “ex cathedra”, ou seguindo o ensino ordinário, repetindo o que outros Papas disseram, devemos crer. Mas, para acreditar, a pessoa precisa ler o que o Sumo Pontífice escreveu, para compreender bem o que ele quis dizer, e depois quais são as consequências que decorrem, embora não estejam presentes porque o Papa não pode escrever tudo; há muita coisa que é preciso saber deduzir. E deduzir por inteiro e cumprir por inteiro, brigue com quem brigar, encrenque com quem encrencar, mas é necessário fazer.

Não basta isso. Deve-se servir a Deus não de modo escondido, com vergonha, mas com ufania e, portanto, ostensiva e publicamente.

Por exemplo, usar o terço. No tempo de minha juventude, homem nenhum usava o terço. Eu comprei um terço e comecei a usá-lo publicamente. Era uma afronta.

A alta sociedade de São Paulo era pequena, de maneira que todos se conheciam e, portanto, eu era conhecido por todo mundo. E, para fazer uma afronta maior a eles, nem comprei um terço de homem, mas um azul claro de Filha de Maria. Nas igrejas, diante de meus colegas da faculdade, eu puxava o tercinho e começava a rezar. Porque, se é preciso afrontar, vou afrontar até o fim! Assim, todos os cuidados que Dona Lucilia punha nos alfinetes e nos vestidos eu colocava na profissão da Fé Católica.

Encontro com um rapaz muito rico, mas profundamente revolucionário

Recordo-me de que naquele tempo havia um rapaz muito rico no colégio em que eu estudava. E na casa dele esteve hospedada a Família Imperial brasileira, no ano de 1922.

Todos se lembrarão com certeza que a Independência do Brasil foi proclamada em 1822, tendo o Brasil se tornado nação separada de Portugal. Em 1922 fez cem anos em que o Brasil estava independente e se realizaram festas, comemorações etc. E entre essas comemorações houve um decreto do Presidente da República, Epitácio Pessoa, que era um homem muito inteligente, culto, nobre, revogando o banimento dos descendentes de D. Pedro I. De fato, era um absurdo que, na comemoração do centenário, os descendentes do imperador que tinha proclamado a independência, não pudessem pôr os pés no Brasil sem serem levados para a cadeia. Era um decreto feito pela liberalidade do Governo republicano. Assim, a Família Imperial veio para o Brasil.

Minha avó e minha mãe eram muito monarquistas; e minha avó mantinha correspondência com a Princesa Isabel etc. Quando os membros da Família Imperial chegaram a São Paulo, foram logo visitados por minha mãe e minha avó, em casa de uma família riquíssima — creio que era a família mais rica daquele tempo —, a qual lhes ofereceu apartamentos suntuosos para se hospedarem.

A senhora dona dessa casa tinha netos que eram meus colegas no Colégio São Luís, de maneira que nos conhecíamos e nos tratávamos.

Um desses netos era um rapaz finíssimo, muito bem educado, com jeito de verdadeiro aristocrata, mas comunista apaixonado; depois se tornou um dos líderes comunistas mais conhecidos do Brasil.

Esse rapaz, nas horas vagas, fazia um pouco de sala para Dom Pedro Henrique e um irmão deste, que morreu ainda menino, em odor de santidade: o príncipe Dom Luís Gastão. Dom Pedro Henrique jogava tênis com o futuro líder comunista ao qual me referi.

Quando a Família Imperial foi embora, certa vez eu estava indo de bonde para o Colégio São Luís e, numa esquina da Avenida da Consolação, vejo entrar esse rapaz; não nos gostávamos, era natural. Ele sentou-se ao meu lado; após pequenos cumprimentos frios, ele me perguntou:

— Você esteve com a Família Imperial?

Respondi:

— Estive, sim.

— Você esteve muito com o Pedro Henrique?

— Várias vezes. E você também?

— Sim, eu joguei tênis com ele.

Após uma pausazinha, ele disse:

— Já estou vendo como você tratou a ele de Alteza, não é?

Eu estava percebendo que ele estava armando uma caçoada por cima de mim; então, voltei-me para ele e disse:

— Sim, senhor. Alteza! Você como tratou?

— Ah, não! Eu tratei de você, porque sou democrata.

— Pois bem, é fácil ser democrata com um príncipe que perdeu o trono. Mas com príncipe que está no trono você trataria de Alteza, não é?

— Não me amole!

— Amolo, sim, porque essa é a lógica.

Fomos até o Colégio São Luís sem conversarmos. Ele já morreu; depois desse fato, nós nunca mais nos falamos. Esse era o modo de ser combativo já para uma criança.

Como o menino Plinio classificava seus estudos

Como expliquei, eu não me importava com a minha roupa, porque era a libré da Revolução; porém, quanto aos meus estudos minha atitude era diferente.

Eu classificava meus estudos em dois grupos: aqueles que se relacionam com a Revolução e a Contra-Revolução; os que não se relacionam.

Estudos que têm relações com a Revolução e a Contra-Revolução:

Primeiro, a Religião: aprender o catecismo melhor do que todas as outras coisas. Em segundo lugar, o Francês, idioma que eu admirava, já conhecia e falava correntemente, e do qual gostava muito. Eu compreendia que o meio de combater a influência Hollywood do cinema era manter a cultura francesa. Então, chegando junto aos colegas eu dizia:

— Que linda língua o Francês!

Um deles logo me respondia:

— Não, o Inglês é muito mais bonito.

— Nunca! Onde é que você está com a cabeça?

— Serve melhor para entender as fitas de cinema.

— Mas isso não quer dizer nada, pois essas fitas não valem nada.

E saía uma discussão…

A grande matéria, depois de Religião: História. Analisando como tinha sido o passado, vim a compreender melhor o presente. Execrei a Revolução Francesa. E tudo quanto pode haver de ódio ao mal no coração de uma criança, havia no meu coração contrarrevolucionário.

Eu gostava muito de Latim; a boçalidade do cinema era contrariada pela penetração do Latim. E apreciava também análise lógica: sujeito, verbo, objeto direto, indireto, complemento circunstancial de tal espécie… Então, tomar uma frase e desarticulá-la, entender as palavras, pôr em ordem: coisa magnífica!

Tudo isto já visava a combatividade.

Por fim, comecei a formar meu vocabulário. As pessoas que, segundo me parecia, falavam um Português bonito eram muito mais velhas do que eu; mas eu me colocava perto delas para ouvi-las falar e notava as palavras que não se diziam todo dia, as quais, entretanto, tinham suco, eram ricas de significado. E comecei a empregar um vocabulário antigo. Muitas pessoas ficavam indignadas porque era uma provocação; e eu sustentava a provocação.

Aí está, conforme a formação dada por Dona Lucilia, a origem de minha combatividade. Dessa forma, ao que me foi perguntado, respondo com muito afeto.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 11/2/1995)

A arte de cumprimentar

Devido a sua inocência e ao ambiente criado por Dona Lucilia, Dr. Plinio não cedeu à ação revolucionária exercida por muitos dos seus companheiros de colégio. Para opor-se a essa má influência, que se manifestava, entre outras coisas, pelo modo de saudação, ele elaborou uma verdadeira arte contrarrevolucionária de cumprimentar, própria às circunstâncias.

 

Poder-se-ia dizer que, dando rapidamente como introdução o histórico de como nasceu a observação da vida e da luta revolucionária e contrarrevolucionária, depois se compreende melhor como a galharia enorme da ação nasceu em doutrina, já articulada, e como esta dirige a ação. É algo que parece quase impossível de conceber; porém — como tantas coisas quase impossíveis —, tendo o segredo e efetuando as devidas voltas, a questão acaba sendo muito simples.

A inocência, o bom espírito e o ambiente criado por Dona Lucilia

Nessas reminiscências, sempre me reporto ao começo da minha ação contrarrevolucionária, portanto, no Colégio São Luís; e também em dois estabelecimentos secundários, que frequentei como intervalo do São Luís: o curso do Prof. Aquiles Raspantini e outro estabelecimento de ensino chamado, se não me engano, Colégio Paulistano. Além disso, o contato com o meu mundo de criança, e depois a sociedade nos cinco ou seis anos em que a frequentei, metido nela até o alto da cabeça. E um pouco a Faculdade de Direito, que representou um papel muito menor para isso.

Tudo isso somado constituiu o seguinte:

Eu já possuía posição tomada a respeito de uma porção de coisas, em virtude da inocência, do bom espírito, do ambiente criado por mamãe. E um pouco da atmosfera de minha casa, que eu considerava como sendo muito boa. Nessa época eu não via, no ambiente de uma família tradicional, o que pode haver de não tradicional e já desviando para as coisas modernas; então, eu dava àquilo uma adesão inteira, sem jaça — sobretudo à Igreja Católica, evidentemente —, pois apresentava um modo de ser harmônico e coerente diante de mim.

Sentindo o choque disso, daquilo, daquilo outro, eu percebia o contraste. Mas não o notava apenas entre uma coisa e outra, quer dizer, o mundo revolucionário faz determinada coisa de tal jeito, e eu faço de outro jeito; eu percebia muito claramente o espírito que presidia aquilo, o qual era o oposto do espírito que havia em mim.

Por detrás do modo de se cumprimentar havia todo um mundo

Vou dar um exemplo. Um dos primeiros choques que tive foi o modo de muitos meninos se cumprimentarem fora do meu ambiente, no colégio.

É de bom senso que os meninos, chegando à escola, não fiquem se saudando. São quatrocentos, quinhentos alunos, não podem estar desejando bom dia uns aos outros. Isto é uma coisa que entra pelos olhos.

Mas muitas vezes se encontravam na rua, por exemplo, no que hoje é o centro velho e naquele tempo era o centro da São Paulinho. Ia-se lá para tomar sorvete, comer doces em alguma confeitaria, comprar um chapéu, enfim, para mil outras coisas, e se deparava com colegas. E a regra era, encontrando qualquer pessoa conhecida, inclusive meninos, cumprimentá-la tirando o chapéu, amavelmente. Todos os meninos usavam chapéu naquele tempo.

Ora, eu encontrava, muitas vezes, os meus colegas e, ao invés de receber um cumprimento afável, cerimonioso, a que estava habituado — não imaginava que houvesse outro cumprimento —, davam-me uma saudação despachada. E não era só comigo, mas todos eles, entre si, quase não se cumprimentavam.

Eu percebia logo que isso era uma abreviação das fórmulas de cumprimento antigas, europeias, em benefício das fórmulas hollywoodianas, pois a saudação que eu via as pessoas se darem nas fitas de cinema era essa. E notava, por uma conexão, que havia todo um mundo atrás dessa maneira de se cumprimentar. A recusa da amabilidade, do respeito, da cortesia, da confiança recíproca, e o ritmo acelerado, o modo meio bruto de fazer, o desprezo das fórmulas antigas como sendo coisas completamente inúteis, indicavam uma introdução de uma certa brutalidade na vida. Eu via isso com toda a clareza.

Se imitasse os outros meninos, inalaria seu espírito

E, observando que esse menino, aquele, aquele outro, faziam, sentiam exatamente dessa maneira, eu percebia definida uma oposição que apresentava um problema de ação: à vista de eles fazerem assim, nada mais fácil do que eu me pôr em dia, cumprimentando-os como eles se saudavam; era até mais simples do que o cumprimento afável.

Mas surgia a questão: Se eu imitar o jeito deles, inalo o seu espírito, é inevitável. Se os cumprimentar a meu modo, coloco-me em situação inferior porque estou gastando gentilezas e afabilidades com indivíduos que me respondem com um aceno das sobrancelhas, e fico fazendo papel de tonto, e isto também não posso admitir. Um homem que não é capaz de manter a sua própria nota não é homem.

Então, como agir? Tenho que arranjar um meio-termo, que faça com que eu mantenha todo o meu espírito, e o manifeste do modo mais discreto possível para evitar um entrechoque, mas é necessário que seja visível para evitar uma capitulação. De que forma, então, vou cumprimentar? Quer dizer, até que ponto este indivíduo com quem estou tratando — e outros que têm a mesma mentalidade — tolera que eu leve adiante alguma coisa parecida com o cumprimento tradicional? Até que ponto ele explode? Isso de um lado.

De outro lado, como posso tapear a situação, pondo num modo de cumprimentar “aggiornato”(1) tudo quanto eu quero?

Seriedade e afabilidade no trato com os colegas

Fica aqui enunciado um problema que se repete em série, em centenas de outros casos. É toda uma clave do estilo de vida que se põe.

Então o que devo fazer? Tirar do cumprimento a solenidade de um homem? Porque eu cumprimentava com a solenidade de um homem, e não de um menino, pelo modo com o qual fui educado. Eu percebia que não podia exigir dos outros essa solenidade assim, porém deveria pôr, no meu modo de cumprimentar um colega, algo de cerimonioso. Mas qual é o modo de um menino ser cerimonioso sem imitar os mais velhos, sem parecer, portanto, um doutorzinho?

Refleti: Isto se faz assim, assim, assim. Bem, então vou agir desse modo. Posso entrar nos pormenores, explicando como era a forma de meu cumprimento; naturalmente isso alonga muito a série de reuniões que me pediram fazer.

O primeiro ponto era a seriedade de uma pessoa capaz de qualquer resposta, e de correr qualquer risco: Não mexam comigo porque dá encrenca! E encrenca de argumentação, mas se for preciso vou mais longe e, embora eu não seja muito forte, tomo de uma vez uma atitude que manifeste muita segurança, coragem e força! E até lá minha força chegava.

Acima disso, uma afabilidade um tanto maior da que todos eles tinham uns com os outros, mas por detrás deveriam entender que estava a força.

A linguagem como instrumento contrarrevolucionário

Depois, uma linguagem que foi, durante toda a minha vida, o instrumento que procurei usar, aproveitando talvez facilidades nordestinas. Sem ser pedante nem rebuscada, precisaria ser uma linguagem com muito mais vocábulos do que a deles, e, portanto, falando coisas que eles não sabiam dizer, e pondo na conversa uma espécie de natural superioridade bem como consistência nos temas que eu invocava, e cabendo numa atmosfera de brincadeira composta, não de brincadeira decomposta. Essas coisas criavam em torno de mim uma esfera de superioridade, ajustada a menino. 

Mas tudo isso, que é uma solução para um caso concreto, se desdobra, tem subjacentes, regras a respeito de como tratar os revolucionários.

Eles se vingavam a seu modo, quer dizer, não sabendo como sair disso, boicotavam. Então, que atitude tomar diante do boicote?

Ao longo da minha vida, houve muitas outras situações as quais precisei estudar milímetro a milímetro e constituíram um acervo de experiências “regulogênicas”, que geravam regras. Entretanto não era a concepção do princípio no ar para depois aplicá-lo, mas a experiência transformada em regra. Tratava-se de uma coisa completamente diferente e, por essa razão, muito útil.

Acrescentem-se inúmeras situações históricas estudadas; tudo isso forma uma caudal de regras que, se eu quisesse escrever, poderia levar dez anos de minha vida… v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/08/1987)

 

1) Do italiano: atualizado. Aqui tem a conotação de estar de acordo com a moda.

 

Gravidade, leveza e distinção

Desde o seu tempo de mocinha, Dona Lucilia conservava a ideia de sublimidade da vida que era vista, nos seus aspectos religiosos, em dois canais: a Igreja e a Civilização Cristã. Ela queria viver catolicamente a ordem temporal, forçando essa ordem a servir de conduto para a osmose da influência da Igreja.

 

A  fotografia de Dona Lucilia, tirada em Paris, retrata uma senhora caracteristicamente de boa sociedade, do fim da Belle Époque. A Belle Époque terminou com a Primeira Guerra Mundial, que eclodiu um ano ou dois depois de mamãe estar de volta ao Brasil.

Seriedade e espírito de oração

Há uma diferença enorme entre o porte, o penteado, o traje que ela usava, próprios da Belle Époque, e o que veio depois com a americanização da moda. Nessa fotografia a moda ainda é absolutamente europeia, esse vestido deve ter sido encomendado em algum costureiro francês, e o tom, o modo de estar sentada são característicos da Belle Époque, ainda tocando um tanto no romantismo.

O vestido é distinto, de valor elevado, mas sem ostentação de riqueza. Enfim, é a ordem temporal sustentando e vivendo em boa harmonia com a virtude católica. 

O olhar é muito firme, inteiramente sério, de uma seriedade pouco comum. A posição da cabeça indica uma pessoa que está refletindo com essa seriedade, mas durante uma solenidade social, o que naquele tempo era muito normal. Enquanto que, a partir do período posterior à Primeira Guerra Mundial, essa atitude ficaria ridícula; uma pessoa não pensaria com essa seriedade nem enquanto estava sozinha, porque a época da seriedade havia acabado.

Nessa fotografia transparece um pensamento profundo de quem está fazendo oração no sentido próprio da palavra, que é “elevatio mentis in Deum”. Não é só fazer súplicas, mas também considerar as coisas à luz da Religião Católica.

Nota-se muito nessa fotografia todo o conjunto do espírito daquele tempo, mas é o espírito de uma pessoa inteiramente pertencente à ordem temporal. Olhando para ela não se começaria por dizer: “Que magnífica terciária franciscana!” Porque não era uma terciária franciscana, mas uma senhora de sociedade presente num ato social.

Viver catolicamente a ordem temporal

O sofá no qual Dona Lucilia está sentada faz parte do mobiliário que se usava para terraços, jardins, etc. O fotógrafo representou-a como se ela estivesse ao ar livre, tendo ao fundo um misto de tempestade e de luz clara. Mas que também já não se usou depois da guerra, porque essa combinação tem qualquer coisa de grandioso, de trágico, de dramático que explica o total da personalidade dela.

Aliás, percebe-se que o fotógrafo era muito bom, porque a cabeça dela está colocada em função dessas nuvens exatamente como devia estar. Isso deve ser um painel móvel, e ele pôs no ponto que parecesse não intencional, mas que era finamente intencional.

Isso tudo supõe uma senhora profundamente católica imersa na esfera temporal, integrante dessa esfera, não pensando em fazer outra coisa senão viver catolicamente a ordem temporal, e forçando essa ordem a servir de conduto para a osmose da influência da Igreja.

Terminada a guerra, tudo passou a mudar, a começar pelo corte de cabelo das mulheres à la garçonne. Depois, o uso de joias ostensivamente falsas: pérolas do tamanho de bolotas, que nem o Xá da Pérsia tinha e nem sequer existem na ordem da natureza. E coisas desse gênero. Os vestidos com a saia até a altura do joelho. E, sobretudo, depois da Primeira Guerra Mundial uma pessoa nunca se sentaria com essa dignidade no sofá, nem tomaria esse ar pensativo e, ao mesmo tempo, de “grande dame”, com muita leveza. Gravidade, leveza e distinção são qualidades muito difíceis de serem conjugadas. Entretanto, estão unidas nela.

Ideia de sublimidade da vida

Poderíamos imaginar que se houvesse um acidente, e alguém morresse perto dela, imediatamente ela se ajoelharia, prestaria homenagem ao cadáver, puxando um tercinho e começando a rezar, nesses trajes. Ficaria perfeitamente bem.

Quando falei da profundidade de espírito que mamãe manifesta aí, de fato eu queria me referir à sua notável elevação de alma. Isso fazia com que ela não fosse uma conviva própria para ter uma conversa de brincadeira. Ora, depois da Belle Époque a conversa era só de brincadeira. E se não fosse brincadeira, não era social.

Em mamãe havia um mistério por onde se percebia que a sua alma era muito maior do que a sua situação. E que, portanto, ela vivia de uma vida da alma muito maior do que a vida social retratada nessa fotografia. Sem dúvida, ela vivia essa situação por completo, e a assumiu também inteiramente, mas sobrava muito. E o que sobrava era o tal mistério, ou seja, uma certa ideia de sublimidade da vida conservada por ela desde o seu tempo de mocinha, em que a existência era vista nos seus aspectos religiosos, por assim dizer, em dois canais: a Igreja e a Civilização Cristã.

A Civilização Cristã do tempo de sua juventude era muito diferente da época correspondente a essa fotografia. Aí já decaíra muito. Quando ela era mocinha, meninota, considerava-se bonito ser uma pessoa muito religiosa, católica, séria, direita. Era o modo de verem a vida no tempo dela. As mães de família, muito dedicadas; as filhas tendo loucura pela mãe; os filhos sendo o bordão da velhice dos pais. De onde mamãe respeitar muito, à maneira católica, pessoas de sua família a quem ela atribuía essas virtudes. Embora nem sempre as tivessem, ela acreditava que tinham, por causa do gosto que ela possuía de admirar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/4/1991)

Encontro com a Princesa Isabel

Dona Lucilia formava seu filho sobretudo dando-lhe o excelente exemplo de sua própria vida. E frequentemente lhe narrava atraentes reminiscências de sua família, tais como o encontro que ela e sua mãe tiveram com a Princesa Isabel, em Paris.

 

Por vezes, minha mãe voltava a narrar certos episódios de sua vida porque, sem nunca se contradizer, sempre tinha um pormenor a acrescentar ou um comentário a fazer, até mesmo pela inflexão de voz. Assim, ela nos contou várias vezes seu encontro com a Princesa Isabel, em Paris.

Agradável encontro numa igreja de Paris

Após o golpe republicano de 15 de novembro de 1889, Dom Pedro II e a família imperial foram exilados para a França, para onde partiram num navio chamado “Alagoas” que o governo republicano pôs à disposição deles.

A Princesa Isabel morava em Paris e assistia à Missa aos domingos numa igreja próxima à sua residência, a Igreja Saint-Germain-l’Auxerrois, em honra de São Germano, um antigo Santo francês,  bispo da cidade de Auxerre.

Por coincidência, minha mãe e minha avó foram a essa igreja também num domingo. Não costumavam assistir à Missa ali, porque o hotel onde estavam hospedadas ficava em outra região, mas  nesse domingo elas para lá se dirigiram.

Quando entraram, notaram no altar-mor um lugar de honra reservado para pessoas ilustres que deveriam vir. Pouco tempo depois, elas viram entrar a Princesa Isabel – a quem elas conheciam por fotografia – e uma dama que a acompanhava, a Baronesa de Muritiba, uma senhora  do Nordeste do Brasil, extremamente fina, distinta.

Terminada a Missa, minha mãe e minha avó permaneceram ainda rezando durante algum tempo e tiveram a surpresa de ver que a Princesa Isabel e a Baronesa de Muritiba cochichavam qualquer coisa, depois do que a Baronesa saiu. Minutos depois, tendo dado a volta pela sacristia e tomado uma escada para descer até a nave central da igreja, a Baronesa apareceu junto às duas e  perguntou em português:

– As senhoras são brasileiras, não?

Responderam:
– Sim, somos brasileiras.

– A Princesa Isabel as olhou e percebeu pelo tipo físico que deviam ser brasileiras e ficou com desejo de conhecê-las. As senhoras aceitariam subir até a sacristia para cumprimentar a princesa?

As duas não queriam outra coisa, e dentro de minutos estavam lá sendo apresentadas à Princesa Isabel.

Na conversa, a Princesa perguntou a respeito da família delas e, ao receber as explicações, disse que conhecia vários membros correspondentes à geração do pai dela, Dom Pedro II, portanto, à  geração anterior à de minha mãe ou de minha avó. Falaram bastante sobre isso e se tornaram muito amigas.

Reminiscências de família

Uma das reminiscências de família narradas à Princesa era o fato de o pai de minha avó, Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, foi quem ensinou a Imperatriz Dona Teresa Cristina a dançar.

A Imperatriz era manca e naquele tempo as danças muito complicadas, não era esse pula-pula infecto de hoje, mas meio parecidas com minueto, quadrilhas, com reverências, etc., e uma pessoa  manca não podia dançar.

Ora, para Dona Teresa Cristina era uma espécie de vergonha, pois uma imperatriz que não se locomovesse bem não desempenhava adequadamente seu papel.

– Se Vossa Majestade permitir, levante-se e eu lhe indico bem exatamente como tem que colocar o pé no chão.

Ela aceitou, levantou-se e ele indicou bem direito como ela tinha que fazer, e acrescentou:

– Vossa Majestade quer experimentar um passo de dança comigo?

Dona Teresa Cristina concordou, experimentou algumas vezes e percebeu que estava conseguindo dançar. Então resolveram fazer uma surpresa para o Imperador que se encontrava no salão ao  lado, participando do baile.

Os dois entraram dançando no salão. Isso foi uma surpresa para todos que, terminada a dança, irromperam em palmas.

Certa noite, durante uma recepção no Palácio São Cristóvão, onde habitava, ela estava numa sala sozinha quando passou meu bisavô perto dela. Ele era deputado e estava convidado para o baile, e foi cumprimentar a Imperatriz. Esta lhe disse:

– Como o senhor vê, estou nesta tristeza aqui… Na sala ao lado, todo mundo dançando e eu aqui só; não tenho sequer quem converse comigo.

Equivalia a um convite para ele se sentar e conversar um pouco com ela. Ele sentou-se e começaram a conversar exatamente a respeito do defeito que ela tinha no pé, que a impedia de dançar.

Meu bisavô era muito observador, e disse a ela uma coisa arrojada:

– Eu tenho observado a dificuldade de Vossa Majestade, mas acho que existe um meio muito fácil de apoiar-se sobre seu pé que lhe permitirá dançar. Se Vossa Majestade der o passo como eu indicar, Vossa Majestade dança.

A Imperatriz ficou um tanto cética, mas ele insistiu:

– Se Vossa Majestade permitir, levante-se e eu lhe indico bem exatamente como tem que colocar o pé no chão.

Ela aceitou, levantou-se e ele indicou bem direito como ela tinha que fazer, e acrescentou:

– Vossa Majestade quer experimentar um passo de dança comigo?

Dona Teresa Cristina concordou, experimentou algumas vezes e percebeu que estava conseguindo dançar. Então resolveram fazer uma surpresa para o Imperador que se encontrava no salão ao  lado, participando do baile.

Os dois entraram dançando no salão. Isso foi uma surpresa para todos que, terminada a dança, irromperam em palmas.

A Princesa Isabel se lembrava desse fato. Então ligava com esse homem vários outros episódios de pessoas antigas da família de mamãe relacionadas com a família imperial.

Lanche na casa da Princesa em Boulogne-sur-Seine

Resultado, a Princesa Isabel convidou- as para tomarem lanche em sua residência, uma casa apalaciada num bairro muito bom de Paris, Boulogne-sur-Seine.

Estava também em Paris um irmão de minha mãe, casado e com muitos filhos. Segundo o costume do tempo, a Princesa Isabel mandou convidar a cunhada de minha mãe e todos os filhos, por amabilidade.

Houve, então, um episódio desagradável. Um dos oito filhos dessa minha tia, que não tinha estado na igreja, nascera surdo e, por isso, ficara mentalmente muito atrasado. Com esforço, ele acabou  conseguindo falar alguma coisa, mas muito mal e com uma voz muito ruim. Quando entrou a Princesa na sala, esse meu primo perguntou bem alto:

– Tia Lucilia, esta é a Princesa?

Aquela era a hora de não falar nada! A Princesa entrou.

– Fiquem quietos até que ela tenha falado com todos.

Mamãe respondeu, já com medo de sair alguma coisa:
– É, meu filho.
Ele disse:
– Que horror! Eu pensei que a Princesa fosse como se vê no baralho, com coroa na cabeça, uma flor na mão e com gesto bonito. Ela está vestida como a senhora, como vovó, como mamãe. Que horror!

A Princesa chegou perto dele e perguntou:
– O que você está dizendo, meu filho?

Ele repetiu, ela deu risada, foi muito amável.

A mãe do rapaz só faltou enterrar-se no chão de vergonha, mas não tinha remédio…

Mas tudo isto era tomado como coisa engraçada e formava uma certa relação de afeto. Então, no ano- -bom elas escreviam para a Princesa Isabel e para a Baronesa de Muritiba, e estas respondiam. Quando o correio trazia uma carta da Princesa Isabel, parava a conversa, minha avó abria o envelope e lia a carta para todos ouvirem, e isso criava um ambiente ao qual eu estava  habituado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 13/1/1989 e 4/3/1995)