Beleza divina do Reino de Cristo

O reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo se exerce sobre
as almas. Cada indivíduo, nação, Ordem religiosa, forma
como que uma província, um céu. A harmonia dessas
almas individuais e desses grupos humanos constitui no
seu todo a beleza divina do Reino do Divino Salvador.

 

A primeira vez que fui à Europa, o avião que me conduziu chamava-se Ciel de Lorraine. Notei depois que havia uma série de aviões com títulos assim: Céu disto, Céu daquilo…

Encontra-se envolta nisso a ideia de que o céu da Lorena não é o mesmo da Île-de-France e este não é o céu de Auvergne. Portanto, a cada província, com suas características regionais e sua forma de cultura, corresponde um céu, já não o atmosférico, mas outra espécie que não é também o sobrenatural. Trata-se de um céu de cultura. Embora a partir da terra vejamos o mesmo azul na Lorraine ou na Champagne, há qualquer coisa que os diferencia entre si como também da doçura do céu da Île-de-France, por exemplo.

Então, embora se saiba que as nuvens e o céu, realmente com algumas variantes, mas afinal de contas são os mesmos por toda a parte, tem um sentido em se falar de um céu de Lorena, um céu de Auvergne, etc., e esta teoria da variedade dos céus inclui uma espécie de teoria da diversidade dos céus culturais, e de uma projeção para o céu físico de valores culturais da Terra e de uma impregnação destes por elementos vindos do céu astronômico-celeste, conforme se apresenta num lugar, constituindo um todo só que forma cada província a bem dizer um céu. O luar do Ceará, por exemplo, compõe um céu, pelo menos noturno, inteiramente especial.

Cada província é uma espécie de valor de alma que tem um significado próprio, e cuja posse é um elemento capital para a integridade do reino. Este, perdendo uma província, mais do que ficar privado de uns tantos territórios, perde algo que é um valor moral, cultural, o qual, desmembrado do reino, faz com que este perca a sua integridade e fique como, por exemplo, uma imagem sagrada da qual se cortasse uma parte. Quer dizer, algo de irremediavelmente mutilado, enquanto aquela unidade não se reintegrar.

Por causa disso, por exemplo, os franceses, com muito senso para as coisas, fizeram o seguinte: Quando a Alsácia e metade da Lorena foram tomadas na Guerra de 1870, eles envolveram com crepe de luto as estátuas que representavam em Paris essas províncias, significando que o crepe seria tirado quando aquelas províncias fossem reconquistadas.
Era um luto da França e da província. Um luto de alma por causa dessa unidade ideal que é a substância da verdadeira unidade do reino.

Cada indivíduo é como uma província do Reino de Nosso Senhor

A que propósito vêm essas considerações na festa do Reinado de Cristo?
Tenho a impressão de que quem não deteve a sua atenção sobre essa realidade de que acabo de falar, não possui toda facilidade desejável para compreender bem o que é o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É o Reino sobre pessoas e não territórios. Um Reino sobre almas em que cada indivíduo, grupo humano, nação, Ordem religiosa, família, constitui como que uma província, um céu. É a harmonia de todos esses grupos humanos, todas essas famílias de alma, todas essas almas individuais que constitui no seu todo a beleza divina do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo. E o Redentor, como Rei, defende cada alma contra o ataque do adversário com um amor, um conhecimento do valor daquela alma e do que ela significa para a unidade do seu Reino, muito maior do que o Rei da França defenderia a Auvergne, a Lorena ou qualquer outra coisa.
Cada um de nós é a Lorena, a Alsácia, a Île-de-France de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele sabe que, assim como há o céu de uma província, existe o céu de um indivíduo o qual corresponde à sua luz primordial objetiva e subjetiva1. Isso no seu todo é uma espécie de firmamento de beleza espiritual próprio a cada um de nós, que o Divino Salvador ama com um empenho com que um verdadeiro francês deve, por exemplo, amar a Lorena ou o céu da Lorena.
Quer dizer, é este valor de caráter moral e espiritual que se deve amar. Isto nos leva, então, a considerar o seguinte: As províncias ou os municípios do Reino de Cristo Rei são os homens. Cada vez que Nosso Senhor perde ou diminui o exercício efetivo de sua realeza sobre uma alma, dá-se n’Ele, na sua vida terrena, uma tristeza parecida com a do rei que perde sua província; uma espécie de ordem de beleza ideal se perde. Mas cada vez que se volta a Ele, o Divino Salvador tem todas as alegrias dessa recondução. É isto que se joga continuamente na festa de Cristo Rei.

O céu para o qual Nosso Senhor nos chamou…

Existem céus para as várias famílias de alma. Qual será o que corresponde à nossa? Na harmonia de valores espirituais, que é o Reino de Cristo Rei, o que representa nossa família espiritual? Que valores morais, que vocação, que apelo para a virtude, para o heroísmo, para a dedicação incondicional, para enfrentar todas as formas de risco, de trabalho, de despesa, de humilhação, enfim tudo quanto está contido neste valor especial que Nosso Senhor Jesus Cristo criou para esta época, e para o qual Ele nos chamou!

Então nós devemos ter, na festa de Cristo Rei, a seguinte preocupação: o desígnio do Redentor a nosso respeito está se realizando e, portanto, o Reino d’Ele é efetivo em nós, como tem o direito de ser? Nós somos aquilo que Ele quereria que fôssemos?
É preciso dizer que, embora não se possa responder pura e simplesmente sim, sobretudo, graças a Deus, não se pode responder pura e simplesmente não. Devemos, ao formular esta pergunta, ter a alegria de dizer que o fundo de quadro é uma afirmação. E graças a Deus nós somos para Nosso Senhor Jesus Cristo, nessa época em que Ele é tão perseguido e tão flagelado, uma grande consolação.

Mas, por outro lado, isso nos deve dar o desejo de ser e dar ainda mais, para que se integre sobre nós o exercício efetivo do poder d’Ele. De maneira tal que tenhamos toda aquela beleza de alma, a qual seria propriamente o nosso céu nesse conjunto de formosuras que deveria ser, nos dias de hoje – e de fato é –, a Santa Igreja Católica. Porque esta, por mais desfigurada e conspurcada que esteja, é um jardim onde continuamente desabrocham flores para Nosso Senhor. E nós, talvez só no dia do Juízo Final, poderemos saber quantos santos florescem no desconhecimento, na ignorância, no abandono, isolados e odiados aqui, lá e acolá, dando a Deus uma glória completa e magnífica.

…e cuja estrela central é o Imaculado Coração de Maria

É assim que cada um de nós deve ver a atual situação e, quando for comungar, perguntar com que disposição o Redentor me recebe. Que graças, que generosidade Ele está disposto a me conceder?
Essas coisas na vida são uma espécie de regra de três. Nosso Senhor recebe a cada um de nós na Eucaristia com uma alegria, uma certa medida de tristeza e muita esperança. Isto no conjunto constitui a incompleta realeza de Cristo sobre cada um de nós, mas que, marchando para ser completa, é uma razão contínua de gáudio para Ele.
Assim, peçamos ao Redentor, por meio do Imaculado Coração de Maria, que nos dê a compreensão de todos esses céus da Igreja Católica, do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo, de que nós somos individualmente e como família de almas uma espécie de céu dentro desse conjunto de céus. Um céu preciosíssimo porque sua estrela central é o Imaculado Coração de Maria. Estrela mais preciosa não poderia haver.
Que compreendamos as graças recebidas, quanto motivo temos para esperar perdão, misericórdia, e roguemos muitos favores com grande empenho e desembaraço, com uma respeitosa desenvoltura. A isso nos conduzem essas altíssimas considerações.v

(Extraído de conferência de 21/10/1964)

1) Luz primordial é o aspecto de Deus que cada alma deve refletir e contemplar, em função do qual precisa ordenar toda a sua existência, a sua vocação pessoal. A luz primordial objetiva está no Criador e a subjetiva se encontra na alma da pessoa.

 

 

Vítima do ódio ao Bem e à Verdade

 

 

 

À medida que Santo Estêvão manifestava as maravilhas que trazia em seu interior, o ódio contra ele ia aumentando.
Primeiro, à vista dos milagres que operava, os inimigos se levantaram para disputar com ele. Depois, tendo o santo diácono discutido maravilhosamente, reduzindo-os ao silêncio, aumentou-lhes o ódio a ponto de fazê-los ranger os dentes. Ao vê-lo num êxtase, transbordando de sobrenatural, resolveram matá-lo.

Ódio ao quê? Não pensemos que Santo Estêvão foi inábil, imprudente, de maneira a não se fazer entender por aquela gente. Entenderam-no com perfeição. Mas está na essência da iniquidade e perfídia dos filhos das trevas odiar o bem e a verdade, que, quanto mais vão se manifestando, tanto mais são odiados.

Por fim, o ódio culminou na lapidação, e então se passou esta cena maravilhosa: Santo Estêvão, qual outro Cordeiro de Deus, com os olhos voltados para o céu, todo ferido, pronunciou esta oração: “Senhor Jesus, recebei o meu espírito!” Em seguida, vergado pelas pedradas,
caiu de joelhos e disse: “Senhor, não lhes imputeis este pecado!”

Um suspiro… e aquele homem todo ensanguentado dormiu no Senhor. A tormenta se tinha transformado num sono, na morte plácida dos justos; o martírio estava consumado e sua alma subia ao Céu.

(Extraído de conferência de 26/12/1966)

Primeiro lance da Contra-Revolução

O demônio tem especial ódio à Imaculada Conceição pelo fato de esta singular prerrogativa de Nossa Senhora constituir para ele uma derrota dolorosíssima e, por assim dizer, pessoal. Com efeito, tendo satanás conseguido arrastar nossos primeiros pais ao pecado original, as vantagens que lhe traria essa queda, caso não houvesse a Redenção, seriam simplesmente espetaculares. O homem, criatura nobre de Deus, ficou desfigurado pelo pecado e sujeito às más tendências. Com isso tornou-se incalculável o número de pessoas capazes de cair, ao longo dos séculos, no Inferno. Imenso foi o êxito imediato obtido pelo demônio com o pecado de Adão e Eva.

O único modo de anular esse triunfo do mal seria o Verbo Se encarnar e, enquanto Homem-Deus, oferecer- Se como vítima pela nossa salvação. Ora, essa vitória do Bem teve sua primeira realização no nascimento de uma menina excelsa, imaculada, que, apesar de todos os embustes do demônio, nascia livre da trama na qual ele pretendia envolver todo o gênero humano. Em favor d’Ela, Deus rompeu a urdidura satânica. E Ela nasceu fora da lei do pecado original.

Portanto, a raiz da salvação do mundo, o ponto de partida da Redenção da humanidade, foi o fato de Nossa Senhora ter sido criada isenta do pecado original. Donde nos ser fácil compreender como o primeiro lance da Contra-Revolução foi, precisamente, a Imaculada Conceição de Maria Virgem, prelúdio da Encarnação do Verbo.

(Extraído de conferência de 3/12/1964)
O Primeiro Primeiro lance da Contra-Revolução
Luis C.R. Abreu

Um dos primeiros lutadores contra a heresia

 

São João Evangelista, o Apóstolo virgem, que auscultou o Sagrado Coração de Jesus e recebeu Nossa Senhora como presente, foi também o precursor de todos os batalhadores da Fé até o fim do mundo.

 

A respeito de São João Evangelista, cuja festa a Igreja comemora no dia 27 de dezembro, temos a comentar uma ficha extraída de Dom Guéranger1.

Águia que se eleva até ao Divino Sol

Santo Estêvão é reconhecido como o protótipo dos mártires, mas São João nos aparece como o príncipe dos virgens. O martírio valeu a Estêvão a coroa e a palma; a virgindade mereceu a João prerrogativas sublimes que, ao mesmo tempo que demonstram o valor da castidade, colocam esse discípulo entre os principais membros da humanidade.
Descendente de Davi, da família da Santíssima Virgem, São João era parente de Nosso Senhor segundo a carne. Enquanto outros foram Apóstolos e discípulos, ele foi amigo do Filho de Deus. Como proclama a Santa Igreja, essa predileção se deve ao sacrifício da virgindade oferecido por João ao Homem-Deus. Convém, pois, ressaltar no dia de sua festa as graças e prerrogativas que para ele decorrem dessa amizade celestial.
Conforme o Evangelho, São João foi o discípulo que Jesus amava. Essa simples frase basta por si mesma, mas esse amor deve ter sido para ele o princípio de dons assinalados, entre os quais destaca-se o fato de ter sido o primeiro defensor do Verbo Divino, do Filho consubstancial ao Pai, que a heresia já começava a negar. Nessa defesa, São João eleva-se como águia até ao Divino Sol em ensinamentos luminosos e límpidos.

Se Moisés, após ter conversado com o Senhor, retira-se desse maravilhoso entretenimento com a fronte ornada de raios maravilhosos, quão radiosa deveria ser a face admirável de João que se apoiava sobre o Coração de Jesus, onde, como fala o Apóstolo, estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e da ciência!

Ademais, foi o filho de Maria! Ao morrer, Jesus deixava sua Mãe. Quem na Terra mereceria receber um tal legado? Por certo, o Salvador deveria enviar os seus Anjos para guardar e consolar a Santíssima Virgem. Mas, do alto da Cruz, o Salvador viu o seu discípulo virgem, cuja castidade o tornou digno de herdar esse tesouro tão valioso. Assim, segundo a bela frase de São Pedro Damião, Pedro recebeu em depósito a Igreja, a mãe dos homens, mas João recebeu Maria, a Mãe de Deus.

A castidade enobrece e dignifica a criatura humana

Nesse texto pululam os pensamentos profundos e as considerações importantes, de maneira a não ser possível comentar tudo, mas alguma coisa pode ser considerada.
Em primeiro lugar é a afirmação, muito verdadeira, de que o sacrifício da virgindade, a oblação da castidade, é tão grata a Deus que vem logo depois do martírio.
A castidade é, sobretudo, uma virtude da alma a qual importa num abandono do que é baixo, sórdido, numa renúncia a tudo aquilo que tenderia a estabelecer o domínio da matéria sobre o espírito. A castidade enobrece e dignifica a criatura humana, tornando-a afim com Deus. Por isso Nosso Senhor Jesus Cristo amava São João a ponto de ser – como está lembrado nesta ficha – o discípulo a quem Jesus amava.
Está muito bem afirmado: se os outros foram Apóstolos e discípulos de Nosso Senhor, ele foi o amigo. Ele era o mais próximo de todos e a quem o Redentor tributava um sentimento acima do dado aos outros.
Aquele pequeno episódio que se deu na Ceia é muito característico a esse respeito. São Pedro queria saber quem era a pessoa que iria trair Nosso Senhor, porque o Divino Salvador tinha dito que um deles trairia. Então São Pedro – notem, tratava-se do primeiro Papa –, querendo de todos os modos conhecer o nome dessa pessoa, pediu a São João para perguntar, e este, pousando a cabeça sobre o próprio peito de Nosso Senhor, perguntou.
Temos aí uma maravilhosa evocação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. São João ficou ouvindo pulsar o Coração divino. Naquele momento suas pulsações eram de amor, mas também de angústia e de dor porque o abismo de sofrimento em que iria precipitar-Se estava chegando perto d’Ele.
Vê-se nesse fato que São João – uma alma eminentemente virgem, mas também chegada a Nosso Senhor e devotíssima do Sagrado Coração de Jesus – tinha uma proximidade única em relação ao Redentor.

Grandeza de São João Evangelista

Mas, como diz muito bem Dom Guéranger, pode-se afirmar que um dom o qual não ficava abaixo desse era o de receber Maria como Mãe. Nosso Senhor, ao morrer, deixou ao seu amigo, ao seu discípulo predileto mais do que a todos os outros, um tesouro de valor inestimável: Nossa Senhora, a Rainha do Céu e da Terra, o primeiro ser abaixo de Deus, tudo o que o Criador pode dar a um homem. Mais do que isto Deus não poderia conceder.
Nisso há outra manifestação extraordinária do amor às almas virgens. Nossa Senhora, Virgem, foi dada pelo virginal Filho ao virginal amigo, ao virginal discípulo, São João. Eis mais alguns traços para considerar a grandeza desse Santo.
Porém, o quadro não estaria completo se não fosse mencionado um outro aspecto da vida dele. Ele foi um dos primeiros lutadores contra a heresia. A primeiríssima heresia que nascia naquele tempo era a respeito das relações entre as naturezas humana e divina de Nosso Senhor, e São João começou a lutar contra essa heresia.
Então o Apóstolo virgem, o Apóstolo do Coração de Jesus, o Apóstolo que recebeu Nossa Senhora como presente, foi também o precursor de todos os lutadores da Fé até o fim do mundo, até o momento no qual o Profeta Elias virá lutar contra o anticristo.
Nestas considerações temos matéria ampla para nos recomendarmos a São João, pedindo que nos consiga as qualidades de alma que o fizeram digno deste prêmio de uma grandeza incomensurável: receber Nossa Senhora para tomar conta d’Ela.v

(Extraído de conferência de dezembro de 1964) 1) Cf. GUÉRANGER, Prosper. L’année liturgique. Paris: Librairie Religieuse H. Oudin. 1900. v. I, p. 326-331.

A justiça e a misericórdia se oscularam

Há espíritos que fazem admiravelmente o bem por meio da severidade, e outros que o realizam, dentro da medida do razoável, pela brandura e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto expulsava os vendilhões do Templo; outros, enquanto Ele perdoava Santa Maria Madalena.

 

28 de fevereiro a Igreja comemora a festa de São Romão, abade. Temos a comentar uma ficha biográfica tirada da obra de Daras, Les Vies des Saints.

Lutar corajosamente contra o demônio

São Romão, nascido em 399, na Borgonha, foi fundador de um famoso convento na região do Franco Condado. Desde jovem retirou-se para a solidão, sendo mais tarde seguido por seu irmão, São Licínio. Conta-se que levavam uma vida que consideravam de paz e felicidade, quando o demônio resolveu interrompê-la. Cada vez que se punham de joelhos para rezar, o demônio fazia cair sobre eles uma chuva de pedras cortantes, que os feriam e impediam de continuar. Ambos resistiram por algum tempo, mas, vendo que nada conseguiam, decidiram abandonar o retiro. Ao chegarem a uma aldeia, foram hospedados por uma pobre mulher que lhes perguntou de onde vinham. Não sem alguma vergonha, narraram toda a verdade.
— Vós deveríeis, disse a mulher, lutar corajosamente contra o demônio e não temer os embustes e ódio daquele que tão frequentemente foi vencido pelos amigos de Deus. Se ele ataca os homens, é por medo de que eles, por suas virtudes, subam ao lugar de onde a perfídia diabólica o fez cair.
Ao saírem dessa casa, consideraram a sua fraqueza e quão pouco haviam combatido. Voltaram sobre seus passos e, com orações e paciência, venceram o inimigo.

São Licínio era severíssimo e São Romão agia com brandura

Mais tarde, tendo já fundado numerosos mosteiros, os dois irmãos visitavam essas fundações com frequência. São Licínio era severíssimo, não perdoando o menor deslize. São Romão, ao contrário, era bem mais misericordioso.
Aconteceu que São Licínio, visitando um convento na Alemanha, encontrou na cozinha excessiva quantidade de legumes e peixes. Escandalizado com aquilo, fez cozinhar tudo junto para castigo dos monges. A comida saiu tão repugnante que doze religiosos deixaram a casa, não suportando a penitência. São Romão teve uma visão sobre esse acontecimento e, quando Licínio voltou, disse-lhe:
— Meu irmão, é melhor não visitar as ovelhas do que ir vê-las para dispersá-las.

 

Resposta de São Licínio:
— Não tenhais pena, meu caro irmão! Não é preciso purificar o campo do Senhor e separar a palha do bom grão? Os que se foram eram doze orgulhosos em quem o Senhor não mais habitava.
São Romão concordou. Mas daí em diante chorava tão profundamente, magoado com a partida dos monges, que Deus, atendendo suas preces, reconduziu mais tarde os doze recalcitrantes ao convento. A ele se apresentaram voluntariamente para fazer penitência.

Combatentes varonis

Nesta narração há uma série de fatos interessantes para considerar. Em primeiro lugar, encontramo-nos em face da admirável floração de Santos ocorrida depois da queda do Império Romano do Ocidente. Vemos dois irmãos que levam uma vida de grande santidade, num lugar ermo, em meio a uma natureza amena, bucólica, felizes sem os atrativos das coisas da cidade, nem do mundo.
Podemos imaginar, nas horas de oração, esses irmãos ajoelhados, rezando um ao lado do outro – assim os representaria uma iluminura –, Nossa Senhora aparecendo no alto e sorrindo para eles.

Então, um primeiro ato é o da felicidade eremítica e bucólica desses dois irmãos, que vivem numa atmosfera terrena encimada por um céu parecido com o ar diáfano daqueles firmamentos azuis de Fra Angelico.
Em seguida, vem a provação. O demônio, que lhes tem ódio, emprega um modo de castigá-los muito interessante: uma chuva de pedras cortantes. Eles, tão bonzinhos, tão direitinhos… vem uma chuva medonha de pedras cortantes e os molesta. Procuram, então, rezar direito, mas afinal de contas as pedras são muito sérias e eles resolvem sair.
Encontram, por fim, uma boa mulher que habita uma choupana no campo. Ela perdeu o marido, tem um filho que mora longe e de quem apenas recebe, de vez em quando, uma carta; com uma perna inchada, doente, reumática, reza o tempo inteiro e vive só para Deus.
Essa mulher, provada por sofrimentos e cheia de sabedoria, recebe os dois e, naturalmente, primeiro lhes oferece algo para comer, ajuda a curar alguma ferida causada pelas pedras e depois pergunta o que há. Fora está chovendo torrencialmente, eles estão abrigados na casinha da mulher e lhe contam o ocorrido. Ela suspira, põe os olhos num crucifixo e afirma:

— Irmãos, andastes mal…
E lhes diz a verdade.
Eles, compungidos, passam a noite em prece. Na manhã seguinte, voltam para o ermo e vão lutar contra o demônio. São dois guerreiros contra o maligno que emergem dessa atmosfera azul e rosa-claro, ouro rutilante, os quais, a partir desse momento, transformam-se em lutadores varonis. É a formação deles que assim se enuncia.
Esse era o ambiente e o modo pelo qual a graça operava nessa época. Portanto, não se trata de lenda, mas é o estilo da ação de Deus nesse período.

Os diferentes métodos devem ser utilizados de acordo com o sopro da graça

Depois – na ficha saltam-se vários anéis intermediários –, eles nos aparecem numa posição pomposa, majestosa. São dois Santos veneráveis, cuja fama de santidade reuniu em torno deles vários conventos que lhes obedecem. Tornaram-se patriarcas, provavelmente já de barbas brancas, mais sábios, mais provados na vida do que aquela mulher, derrotaram os demônios, enfrentaram os adversários, fizeram viagens perigosas passando por lugares onde havia feras, pontes mal construídas, bandidos, tempestades, tudo enfrentaram por causa de Deus Nosso Senhor. Estão no zênite de suas vidas, porém mais uma vez um episódio entre eles se dará.
Há uma certa medida de severidade e de brandura que deve ser utilizada de acordo com o sopro da graça e com o modo pelo qual o Divino Salvador quer conduzir os espíritos. Existem espíritos que só sabem fazer bem por meio da severidade suma, e realizam um bem admirável. Há outros espíritos que, dentro da medida do razoável, quase se diria que estão no extremo oposto: são muito brandos, muito suaves, e fazem bem pela sua brandura e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto expulsava os vendilhões do Templo; outros enquanto Ele perdoava Santa Maria Madalena.
Começam a governar esses mosteiros. São Licínio visita um deles e, encontrando irregularidades, aplica uma correção severa. Entretanto a Igreja é multíplice, e São Romão tinha o espírito diverso de seu irmão.
Notem a sutileza e o conteúdo teológico interessantíssimo do fato: São Romão lamentou tal atitude e censurou São Licínio. Este deu-lhe uma resposta esplêndida, explicando tudo. São Romão, suspirando, concordou.

Severidade e doçura aliadas à força da oração

Mas a Providência quis que a misericórdia não saísse derrotada. Onde São Licínio tinha feito bem em expulsar, São Romão fez bem em pedir que voltassem. Este se pôs a chorar, e vê-se então o velho com as barbas brancas, numa atitude enternecida, pensando naquelas almas, as lágrimas cristalinas de olhos cristalinos, que correm ao longo de uma face alva e emaciada e chegam a cair no chão, enternecem o Anjo da Guarda e encontram eco diante de Nossa Senhora, a Qual, por sua vez, tem sempre audiência diante de Deus. Maria Santíssima pede. Resultado: os monges, que São Licínio com tão boa vassoura varrera, voltam. Não regressam como ele tinha varrido, mas emendados por uma ação que está para além das vias normais da graça: não é o corretivo de São Licínio, mas uma bela superação dele. A graça conseguiu a conversão daqueles que a justiça, a tão bom título e tão oportunamente, tinha castigado. Iustitia et pax osculatæ sunt, diz o Salmo (85, 11) – a justiça e a paz se oscularam. Aqui se poderia afirmar que a justiça e a misericórdia se oscularam. E termina assim, num encantador happy end, esta ficha.
Que São Romão nos consiga essa candura de alma, tão extraordinariamente agradável, para praticarmos a virtude. Mas que tenhamos também a compreensão dos métodos de São Licínio, e não apenas a ternura empregada por São Romão. E nos façam parecidos com eles: São Licínio nos dê toda a sua severidade; e São Romão, a sua doçura com sua força de oração, pois sem esta de nada lhe valeria a doçura.v

(Extraído de conferência de 28/2/1967)

Fidelidade perfeita, humilde e despretensiosa

Fundador, doutor e grande escritor, Santo Afonso atingiu os píncaros da sublimidade na inação, na oração e na dor. Não somente na dor física, mas sofrendo pelas aflições, tristezas e desmoronamentos que se operavam na Igreja Católica. Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas. Santo Afonso é um exemplo de fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, abnegada, humilde, despretensiosa!

 

No primeiro dia de agosto a Igreja comemora a festa de Santo Afonso Maria de Ligório, Bispo e Doutor da Igreja. Consideremos alguns dados a respeito de sua vida (1).

Uma preciosa existência coroada por uma morte prolongada sobre a cruz

De nobre família, foi grande devoto da Bem-Aventurada Virgem Maria. Doutor por excelência da Moral católica, que fora falseada pelo jansenismo. Fundador da Congregação do Santíssimo Redentor, viu-se excluído dela pela Santa Sé mal informada.
Os últimos anos de sua vida Santo Afonso Maria passou-os em casa dos redentoristas em Nocera. Desde então, sua vida foi apenas uma morte prolongada sobre a cruz. Estava velho, enfermo, sofrendo tentações violentas. Sua grande devoção era ao Santíssimo Sacramento e também à Virgem Mãe de Deus. Até então tinha pregado todos os sábados ao povo as virtudes de Maria, mas foi proibido de continuar pelo seu médico e seu confessor.O que mais o preocupava era a glória de Deus e os males da Igreja. Muitas vezes se oferecia em sacrifício por uma e por outra intenção. Tendo sabido que os jesuítas tinham se estabelecido na Rússia e na Prússia, não deixava de dar graças a Deus. “Afirma-se que eles [jesuítas] são cismáticos, dizia, mas não é justo. Sei que o Papa os reconhece como membros da Igreja e os protege. Roguemos a Deus por estes santos religiosos, porque o seu instituto é uma obra favorável ao bem das almas e da Igreja. Cismáticos, cismáticos, o que é isso? O Papa Ganganelli foi instrumento de Deus para os humilhar, e Pio VI é também instrumento para os exaltar. Roguemos a Deus e ele não os deixará de abençoar.”

 

Ficava profundamente emocionado quando sabia que alguns espíritos se mostravam incrédulos ou dispostos a se tornarem tais. Seu pesar era ainda maior ao saber do triunfo dos jansenistas. “Pobre sangue de Cristo, calcado aos pés e desprezado – repetia ele – e, o que há de pior, desprezado por pessoas que se dizem chamadas a restaurar a pureza da doutrina e o fervor dos primeiros fiéis. Por um beijo, Judas entregou Jesus Cristo, e também por um beijo eles traem Jesus e as almas. É um veneno oculto, dão a morte antes que se perceba.”

 

Introduzido na glória celeste com uma vida carregada de méritos

Quantos ensinamentos dentro desta ficha! Em primeiro lugar, o estado sacrifical de Santo Afonso de Ligório. Um fim de vida que era aflição e miséria, ele não podia mais fazer outra coisa senão sofrer, e esta foi provavelmente a parte mais preciosa de sua existência. Ele que tinha sido fundador, doutor, grande escritor, sublimava sua vida morrendo pregado na cruz para nos ensinar que a oração e o sofrimento valem incomparavelmente mais do que todas as obras, e quando um homem vive para rezar e sofrer, ele tem uma vida fecundíssima inteiramente justificada; enquanto que alguém, embora faça toda espécie de obras, mas não reza e não sofre é um homem inútil e, como tal, nocivo. É este o ensinamento que daí se desprende.
É claro que Nossa Senhora quis que esse grande Santo continuasse vivo para a sua alma chegar aos píncaros da sublimidade, e que esses píncaros fossem atingidos na inação, na oração e na dor. Não somente dor física, mas a que tanto devemos pedir: a dor pelas aflições, tristezas, pelos desmoronamentos que se operam na Igreja Católica.

Naquele tempo, a Santa Igreja estava sendo preparada para uma convulsão, a Revolução Francesa, e era necessário que o Corpo Místico de Cristo evitasse essa catástrofe ou pelo menos se preparasse convenientemente para ela. E Santo Afonso de Ligório, de seu leito de dor, comentando cada apostasia, sondando e lamentando as devastações perpetradas pelos jansenistas, mais preocupado com as chagas da Igreja do que com as suas próprias feridas, considerava essa real e trágica situação.
Quando sua alma chega à inteira crucifixão, dá-se com ele o que ocorreu com Nosso Senhor Jesus Cristo: o momento do consummatum est. Santo Afonso então foi chamado e entrou para a glória celeste com a vida carregada de méritos. Isto é viver, isto é morrer!

Quantos Judas temos em torno de nós?

Ele media bem o inconveniente terrível dos inimigos internos da Igreja, e não hesitava em chamá-los de Judas, considerando que eles combatem a Igreja por dentro, atraiçoando-a como Judas traiu o Divino Mestre; e Santo Afonso gemia por causa dessa traição.
Quantos Judas temos em torno de nós? Em outros tempos, poder-se-ia afirmar que os dedos da mão bastavam para contar os Judas que eram conhecidos. Entretanto em nossos dias devo dizer outra coisa: os dedos da mão, em determinados setores, talvez fossem demasiados para contarmos quem não é Judas. Esta é a realidade, ao menos por omissão, superficialidade de espírito, falta de generosidade, de dedicação.
Nesta situação, como nós devemos ter uma dor maior pelo mal que padece a Igreja Católica do que teve Santo Afonso Maria de Ligório! Se ele, com muito menos, sofreu tanto, que direito tenho eu de, por exemplo, considerar como o grande acontecimento do dia tal coisinha que se passou comigo, e ferver, arder, aborrecer-me? O que é isso em comparação ao sofrimento da Igreja? Não é nada. Se eu elevasse a minha alma até a consideração das dores da Igreja Católica, eu passaria sobre tudo isso desapegado, desprendido, aceitando tudo o que fizessem contra mim, ainda que os outros não tivessem razão.
Mas tal é a debilidade da natureza humana que muitas vezes isso não é assim, e nós devemos preparar nossas almas para que sejam cada vez mais desse modo, dispostos a toda humilhação, a toda incompreensão, a aceitar o incompreensível se for preciso, para num ato de suprema lucidez conformarmo-nos com tudo e cumprirmos nosso dever de todos os modos. É isto que Nossa Senhora pede de nós.

Embora fracos, sejamos fiéis!

Por outro lado, vemos como Santo Afonso Maria de Ligório se condoía com o Sangue que Nosso Senhor Jesus Cristo derramou inutilmente. Há uma frase no Antigo Testamento, mas que se refere profeticamente ao Divino Redentor: Quæ utilitas in sanguine meo? – Qual a utilidade de meu sangue? (Sl 29, 10). Como se Ele dissesse: “Eu derramei todo o meu Sangue, e até o que restava de água e Sangue em meu Coração, mas afinal de contas por utilidade de quem? A quem aproveita, quem deseja isto?” Então Santo Afonso tem esta expressão: “Pobre Sangue de Cristo!” Quando presenciamos as abominações que se veem hoje, somos também chamados a dizer: “Pobre Sangue de Cristo…”

Para nós só há uma consolação: a de termos, pelo menos, a possibilidade de utilizar o Sangue de Cristo e as lágrimas de Maria em nosso favor, pedindo que Eles tenham pena de nós e façam com que nossa generosidade seja uma reparação a tantos ultrajes. De maneira que do alto do Calvário Jesus e Maria nos sorriam e encontrem alguma alegria na nossa fidelidade. E, embora fracos, sejamos fiéis de uma fidelidade perfeita e sem jaça, sem esmorecimento, nem conformes, nem condições, abnegada, humilde, despretensiosa! Eis o que devemos ser, mais do que nunca, nesta hora. É este espírito de fidelidade que nós precisamos pedir a Santo Afonso Maria de Ligório.v

(Extraído de conferência de 2/8/1967)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

Escudo da Igreja e gládio contra os demônios

Suscitado por Deus para precipitar no inferno os demônios, proteger a Igreja e os homens contras as investidas diabólicas, São Miguel Arcanjo, cavaleiro arquetípico da milícia celeste, é escudo e gládio em defesa dos planos divinos.

 

A respeito de São Miguel Arcanjo temos uma pequena nota:
São Miguel, Príncipe da milícia celeste, na batalha que houve no Céu combateu os anjos rebeldes. Compete-lhe continuar essa luta para nos livrar do demônio. Dele dependem os Anjos da Guarda. É o Anjo protetor da Igreja e o que apresenta ao Padre Eterno a oblação eucarística.

Cavaleiro leal, forte, puro e vitorioso

Eu chamo a atenção para o fato de que São Miguel comandou a luta contra o demônio e o precipitou no inferno e, além disso, é o chefe dos Anjos da Guarda dos indivíduos e das instituições. Ademais, é ele mesmo o Anjo da Guarda da Instituição das instituições, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Ele tem, portanto, uma função tutelar a respeito da qual podemos nos perguntar que relação há entre a sua missão, derrubando no inferno os que se levantavam contra Deus Nosso Senhor, e a proteção por ele dispensada à Igreja e aos homens neste vale de lágrimas, nesta arena que é a vida.
Estas duas missões se concatenam. São Miguel defendeu a Deus que quis servir-Se dele como seu escudo contra o demônio, e quer que ele seja também o escudo da Santa Igreja e dos homens contra as investidas diabólicas. Porém, um escudo que é, ao mesmo tempo, um gládio. Portanto ele não se limita a defender, mas derrota e precipita no inferno. Eis a dupla missão de São Miguel.
Por causa disso São Miguel era considerado na Idade Média como o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro celeste. Ideal e perfeitamente leal, forte, puro, vitorioso como um cavaleiro deve ser, pondo toda a sua confiança em Deus e em Nossa Senhora.

É, portanto, esta figura admirável de São Miguel que, vista assim, devemos considerar enquanto sendo nosso aliado natural nas lutas, porque não queremos ser outra coisa senão homens que executam, no plano humano, a tarefa de São Miguel Arcanjo, ou seja, defender a honra de Deus, a glória de Nossa Senhora, a Igreja Católica, a Civilização Cristã, mas em nível de contraofensiva, de maneira a prostrar no chão o império do demônio e a estabelecer nesta Terra o Reino de Maria.
Há, por conseguinte, uma afinidade enorme com nossa missão e procedem muito bem aqueles dentre nós que queiram constituir São Miguel Arcanjo seu especial patrono.

“Para a frente, não esmoreçam, ataquem!”

Em Anna Catarina Emmerich1, Visões e Revelações completas, encontramos os seguintes dados a respeito de São Miguel:
Vi novamente a Igreja de São Pedro com sua grande cúpula. Sobre ela resplandecia o Arcanjo São Miguel vestido de cor vermelha, tendo uma grande bandeira de combate nas mãos.
A Terra era um imenso campo de batalha.
Os verdes e azuis lutavam contra os brancos. Estes, sobre os quais reluzia uma espada de fogo, parece que iam sucumbir.
Nem todos sabiam por qual causa combatiam.
A Igreja era de cor sangrenta como a roupa do Arcanjo.
Ouvi que me diziam: “Terá um Batismo de sangue. A Igreja vai ser purificada no sangue do martírio e da perseguição.” Quanto mais se prolongava o combate, mais se apagava a viva cor vermelha da Igreja e se tornava mais transparente.
A purificação ia fazendo dela algo de diáfano, de puro.
O Anjo desceu e se aproximou dos brancos. Estes adquiriram grande coragem sem saber de onde lhes vinha. O Anjo derrotou os inimigos que fugiram em todas as direções. A espada de fogo que estava sobre os brancos desapareceu.
Era uma espécie de ação diabólica, de maldade, uma coisa assim que oprimia os brancos.Em meio ao combate, aumentava o número dos brancos. Grupos de adversários passavam para eles. E numa ocasião passaram em grande número. Sobre o campo de batalha havia, no espaço, legiões de Santos que faziam sinais com as mãos, diferentes uns dos outros, porém animados do mesmo espírito.

São sinais que exortavam: “Para a frente, avancem, não esmoreçam, ataquem!”, enquanto os bons combatem embaixo sob esse sopro. É, portanto, o Céu inteiro aberto para os bons, e estes vencendo os maus para a implantação do Reino de Maria.

Senso da bem-aventurança

Temos também uma ficha de Dom Guéranger a respeito da vocação contemplativa dos Anjos:
Assim, a Igreja considera São Miguel como o mediador de sua prece litúrgica. Ele se mantém entre a humanidade e a divindade. Deus que distribui, com uma ordem admirável, as hierarquias visíveis e invisíveis, emprega por opulência, para louvor de sua glória, o ministério desses espíritos celestes que contemplam sem cessar a face adorável do Pai, e que sabem, melhor do que os homens, adorar e contemplar a beleza de suas perfeições infinitas.
Mi-Ka-El: quem como Deus? Este nome exprime por si só, em sua brevidade, o louvor mais completo, a adoração mais perfeita, o reconhecimento mais inteiro da transcendência divina e a confissão mais humilde do nada da criatura.
Modelo, portanto, de humildade. Porque quem exclama que ninguém é como Deus, afirma que não é nada. E esta é a humildade perfeita.
A forma de humildade própria do cavaleiro é esta: Deus é tudo e ninguém é nada. Agora, a partir disto vamos conversar.

Também a Igreja da Terra convida os espíritos celestes a bendizer o Senhor, cantá-Lo, louvá-Lo e bendizê-Lo sem cessar. Esta vocação contemplativa dos Anjos é o modelo da nossa, como nos faz lembrar o belo prefácio do Sacramentário de São Leão: “É verdadeiramente digno render graças a Vós, que nos ensinais por vosso Apóstolo que nossa vida é dirigida aos Céus; que com benevolência quereis que nos transportemos em espírito ao lugar onde servem esses que veneramos, especialmente dirigirmo-nos para essas alturas na festa do Bem-Aventurado Miguel Arcanjo.”
Aqui está um traço da devoção aos Anjos que é preciso muito notar. Os Anjos são habitantes da corte celeste, onde vivem na eterna contemplação de Deus face a face. E as visões de todos os grandes místicos nos referem as festas que há no Céu e que são verdadeiras solenidades. Não são imagens ou quimeras, mas autênticas festas em que Deus vai manifestando sucessivamente suas grandezas e eles aclamam com triunfos novos, que não terminam jamais.
Há uma felicidade celeste, um senso de que é a pátria de nossa alma e propriamente a ordem de coisas para a qual fomos criados, que corresponde de modo pleno a todas as nossas aspirações. Algo desse senso da bem-aventurança celeste pela contemplação face a face de Deus, que é a perfeição absoluta de todas as coisas, pode e deve passar para a Terra. Nas épocas de verdadeira Fé alguma coisa dessa felicidade filtra, algo dessa piedade é sentida e comunicada pelas almas mais notavelmente piedosas, como um tesouro comum para toda a Igreja.

Desejo das coisas celestes

É isto que tanto falta hoje em dia, de maneira que não se tem a ideia de uma felicidade celeste. E sem essa ideia não se possui apetência do Céu, e as pessoas se chafurdam na pura apetência dos bens terrenos. Mas se pudessem compreender por um instante o que é uma consolação, uma graça do Espírito Santo, esse tipo de felicidade que a consideração dos bens celestes comunica, então começaria o desapego dos bens da Terra, viria a compreensão de como tudo é transitório, como há valores que estão acima das coisas terrenas e que tornam a Terra toda um pouco de poeira.
É exatamente isso que os Santos Anjos podem nos obter, eles que estão inundados dessa felicidade, a qual de vez em quando se comunica sob esta forma aos Santos. Há um modo de fenômeno místico que se manifesta como um concerto muito longínquo, de uma harmonia maravilhosa e extraterrena. Santa Teresinha do Menino Jesus teve isto e ela até menciona na História de uma alma. É um pouco do eterno cântico dos Anjos que chega, por esta forma, aos ouvidos dos homens para lhes dar a apetência das coisas do Céu.
Em nossa época esta apetência falta fabulosamente. As pessoas só se interessam e se empolgam pelas coisas da Terra, pelo dinheiro, pela politicagem, pelo mundanismo, pelas trivialidades do noticiário de todos os dias, mas não se empolgam pelos assuntos elevados, doutrinários e, menos ainda, pelas coisas especificamente celestes.
Vamos pedir aos Anjos que nos comuniquem o desejo das coisas celestes de que eles estão inundados. Esta é uma excelente intenção para ser apresentada na festa de São Miguel Arcanjo, junto com o pedido de que ele nos faça seus imitadores, perfeitos cavaleiros de Nossa Senhora nesta Terra.v

(Extraído de conferência de 28/9/1966)

1) Anna Catarina Emmerich (*1774 – †1824), terciária agostiniana alemã, beatificada em 2004. Recebeu os estigmas da Paixão e foi favorecida por muitas revelações místicas sobre Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima e outros temas religiosos.

Vítima expiatória

Santa Teresinha era singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto; sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas – ao menos segundo a mentalidade revolucionária –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.

Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer, uma Santa de nossos dias. Celebraremos daqui a pouco o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos vinte e quatro anos.

Procuraram ocultar o sentido profundo, admirável, heroico de sua existência

Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si – ao menos segundo a mentalidade liberal –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.
Se não possuíssemos fotografias da “Santa rosa do Carmelo”, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce, de uma doçura sentimental e quase romântica; boa, de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural; enfim, uma jovem de boas inclinações, embora exageradamente sensível, nunca uma autêntica e genuína Santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja do Deus Verdadeiro. Certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, alterou, contudo, sua fisionomia.

Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente determinados episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar o sentido profundo, admirável, heroico da existência da imortal Santinha.
No cinquentenário de sua morte alguém que muito e muito lhe deve procurará saldar com respeitoso amor parte desta dívida, fazendo um comentário doutrinário à sua vida.

O tesouro da Igreja

O pecado original cometido por Adão e os pecados posteriormente praticados pela humanidade constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas e aplacar a ira divina era preciso que a humanidade expiasse. Esta expiação era como que o pagamento de um preço que compensasse a falta cometida. Há nisto, de certo modo, uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse, sacrificasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar esses pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.
Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Ele se compõe, antes de tudo e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus e produziram a Redenção da humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso Sangue bastaria para redimir a humanidade inteira.
Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no momento em que se verteu o primeiro Sangue do Redentor, mas só quando ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa, Deus não Se contenta com o sacrifício superabundantemente suficiente do Redentor. A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída, mas para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o Sacrifício do Homem-Deus é necessário que também nós alcancemos méritos.

Papel da graça divina

O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma, infinitamente preciosa, superabundantemente suficiente e eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas – mistério de Deus –, apesar de perfeitamente dispensável em si mesma, esta parte é indispensável porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas para nos salvar Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também na prece e no sacrifício. Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da Salvação.

Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e por ela ajudado. Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. Isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã – nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria – sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é verdade de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa vontade coopera com a graça, e sem o concurso dela não há virtude possível, mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.

Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação.

Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também esta é uma verdade de Fé. Porém, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos seriam os homens que se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do abuso do livre-arbítrio humano. A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja.
Entretanto, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável, a de Deus, e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças. Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que o tesouro da Igreja esteja sempre cheio de méritos produzidos pelos homens. Os grandes pecadores são filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, nesse tesouro, riquezas novas que substituam as que se empregam com os pecadores.
Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.

Jamais fazer a vontade própria
Daí se deduz que nada mais necessário para a dilatação da Igreja do que enriquecer, sempre e sempre, seu tesouro sobrenatural com novos méritos.
Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há no jardim da Igreja almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus e a expiar pelos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas. Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam; mas quem tem a coragem de expiar?

Este é o sentido mais profundo da vocação dos trapistas, das franciscanas, dominicanas e carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha.

Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena­ com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor, qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale à plena santificação.
Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou simplesment

e às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. J

amais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: o valor de cada pequeno ato consistia no amor de Deus com que era feito.

E que amor meritório! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam, por vezes, tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz é sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito.
Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir?
Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via em que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.

(Extraído de O Legionário
n. 790, 28/9/1947)

Minha Mãe, por vossa bondade, salvai-me!

Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria! Vós fostes concebida sem pecado original e nunca tivestes a menor falta, jamais deixastes de progredir inteiramente
em tudo quanto estava nos desígnios divinos.
Sois a Virgem por respeito a cuja virgindade o Onipotente operou este milagre estupendo: quis que fôsseis ao mesmo tempo Mãe d’Ele e Virgem antes, durante e depois do parto;
de tal maneira vossa virgindade é insondavelmente valiosa.
Mãe de Deus Filho, sois também a Filha amadíssima do Pai Eterno, e o próprio Espírito Santo é vosso Esposo que em Vós gerou o Menino Jesus. Tendes, assim, tudo para serdes atendida.
Ademais, sois cheia de misericórdia para com os pecadores. Ora, um pecador sou eu…
Venho, pois, de joelhos Vos pedir: Perdoai-me, não olheis para os meus pecados, mas sim
para a vossa bondade. Considerai o Sangue que vosso Divino Filho derramou, pensai nas lágrimas que Vós mesma vertestes para que eu fosse salvo.
Minha Mãe, não por meus méritos, mas por vossa bondade, salvai-me!
(Composta em 29/11/1992)

Cantou com Nossa Senhora e os Anjos

No convento do qual São Félix de Valois era Superior, certa madrugada um irmão esqueceu de soar Matinas. O varão de Deus foi, então, ao coro para fazer os arranjos necessários e viu Nossa Senhora sentada num trono magnífico, e os Anjos nas estalas. Todos trajavam o hábito de sua Ordem e começaram a cantar. Com serenidade, ele mesclou o seu canto com aquelas vozes celestes.

São Félix de Valois, da família real francesa, fundou com São João da Matha a Ordem dos Trinitários para resgate dos cativos. O modo em que viviam e eram tratados os cativos nos explica bem porque uma Ordem religiosa foi fundada especialmente para essa finalidade.

Libertar os cativos visava resgatar principalmente os irmãos na Fé

Um reino maometano não era, propriamente, um Estado organizado como nós o concebemos. Quem vê aqueles palácios, como Alhambra por exemplo, pensa que moravam ali reis com um mínimo de decência da praxe inerente a todo Estado organizado, com uma sucessão dinástica regular.

Ora, na realidade, tratava-se de uma espécie de Estado-bandido vivendo, como os bárbaros, numa luta habitual de saques e pilhagens contra quem não fosse eles, e muitas vezes contra eles mesmos também.
De maneira que cada um daqueles reinos, como o de Granada, não possuía uma verdadeira elite e constituía, até certo ponto, uma espécie de antro de bandidos que viviam de pirataria no mar e em terra, roubando como uma fonte habitual de renda e apoderando-se de cativos como um modo costumeiro de conquistar mão de obra e de incutir terror no adversário.
Notem o paralelismo: do lado católico o prisioneiro de guerra era muito melhor tratado do que do lado muçulmano. Assim, quando estavam em guerra, os católicos lutavam em inferioridade de condições, porque os mouros tinham menos medo de ser presos do que os cristãos, os quais, se fossem capturados, seriam pessimamente tratados ao chegarem à zona maometana. Por vezes, prisioneiros importantes eram desfigurados, horrorosamente maltratados, mortos e, com muita frequência, corrompidos moralmente. Era, portanto, uma situação miserável também do ponto de vista moral.
Então, a ideia de libertar os cativos visava resgatar os irmãos na raça, mas principalmente os irmãos na Fé. Era muito mais para salvar dos perigos da alma do que dos tremendos riscos do corpo. Pairava em toda a população uma preocupação: a perdição eterna daqueles que tinham sido aprisionados pelos maometanos.

 

Miséria do mundo atual: pactuar com os regimes perseguidores dos católicos

Muitas vezes, libertar os cativos era uma das razões das expedições católicas contra os muçulmanos. Os cristãos que delas participavam punham em risco suas vidas, sua liberdade e, de algum modo, sua própria salvação eterna, porque também eles podiam ser presos ao tentarem resgatar seus irmãos na Fé.
Havia alguns que não partiam em expedição, mas pediam esmolas para pagar o resgate dos cativos. Enfim, trabalhava-se constantemente com essa intenção de libertar os cristãos capturados pelos mouros.
A ideia de que uma parte da Cristandade estava sujeita ao regime pagão, a todos os sofrimentos e perigos do cativeiro entre os pagãos, gerava nos católicos uma imensa compaixão, um enorme zelo pela salvação daquelas almas, um grande senso de honra cristã.
Como sempre aconteceu na História da Igreja, quando há uma grande necessidade da Esposa Mística de Cristo a Providência suscita uma Ordem religiosa para socorrê-la, a qual é, ao mesmo tempo, uma família de almas e um instrumento de ação novo.
São Félix de Valois surgiu, portanto, como um dos Santos que encarnaram esse ideal, que sentia o problema com toda a energia das graças sobrenaturais que ele recebeu para isso e, por assim dizer, polarizou essa preocupação disseminada por todo o corpo social, chamando a si o encargo da fundação dessa Ordem.
A Ordem da Santíssima Trindade tornou-se famosa e realizou um trabalho prodigioso, atuando até o fim do século XVIII. As nações árabes do Norte da África perderam qualquer possibilidade de fazer novos cativos, e essa Ordem religiosa encheu-se de glória.
Chamo a atenção para o contraste entre a atitude dos católicos do tempo de São Félix de Valois em face dos cativos, e a indiferença reinante em nossos dias diante dos milhares de católicos que sofrem perseguição – muitas vezes tão brutal como outrora – por quererem permanecer fiéis à sua Fé.
Quase ninguém se incomoda com isso. Não se tem zelo nem vontade de combater. Pior ainda, há uma espécie de apetência de ceder, de pactuar com os regimes que promovem essa perseguição. Compreendemos, então, a miséria que se apoderou da Cristandade.

Ressuscitou um jovem príncipe

A respeito de São Félix de Valois, temos os seguintes dados biográficos extraídos do livro Vida dos Santos, do Abbé Daras:
São Félix de Valois foi grande por seu nascimento e maior ainda por suas virtudes. Seu pai era Conde de Vermandois e de Valois, filho do Duque de França e neto de Henrique I, Rei de França. Sua mãe era filha de Thibaud III, chamado o Grande, Conde de Blois e de Champagne.
Quando de sua gestação, sua mãe fez uma novena a São Hugo, Bispo de Rouen. No último dia da novena, estando de joelhos diante do altar do santo prelado, ela adormeceu e viu em sonho a Bem-aventurada Virgem Maria segurando seu Divino Filho em seus braços. Ao seu lado estava uma outra criança, bela e graciosa. Nosso Senhor levava uma cruz nos ombros, e a outra criança segurava uma coroa de flores nas mãos. Então fizeram uma troca: Nosso Senhor deu sua cruz à criança, que Lhe entregou a coroa.
A princesa procurava entender o sentido da visão quando São Hugo apareceu e lhe disse: “Esta criança que tu não conhecias é teu filho, que trocará as flores-de-lis de França pela cruz de Jesus Cristo, e ele a dividirá contigo para que ambos se assemelhem a Jesus Crucificado.”
Com efeito, o menino dividiu a cruz em duas partes, dando uma a sua mãe e guardando outra consigo.
Após a morte de sua mãe, São Félix foi chamado à corte onde tomou a cruz para acompanhar o rei numa Cruzada. Um dia em que se exercitava num torneio com o príncipe, este caiu do cavalo vindo a falecer. O Santo correu ao local, tomou a mão do cadáver e lhe disse: “Em nome da Trindade Santa, levanta-te!” No mesmo instante, o jovem levantou-se curado.

União da coragem militar à modéstia do religioso

ostras do seu valor e virtude. Mantinha, no meio do campo de luta, a vida austera de Claraval, unindo ao ardor e coragem militar a modéstia e discrição do religioso. Distinguiu-se em todas as batalhas das quais tomou parte e, quando voltou a Paris, quis se dar a Deus.
Embora fosse um dos mais próximos herdeiros do rei, trocou realmente a flor-de-lis pela cruz e fez-se religioso.
Após a fundação da Ordem dos Trinitários para a redenção dos cativos, São Félix foi encarregado da direção de um convento. Instruídos por sua palavra e seus exemplos, os religiosos levavam vida exemplar, de tal forma que a Santíssima Virgem e os Anjos dignaram-se honrar com sua presença esse mosteiro.
Em certa véspera da natividade de Nossa Senhora, tendo o sacristão esquecido de soar as Matinas, São Félix desceu ao coro para preparar o que era necessário. Mas ele já o encontrou ocupado pelos Anjos, vestidos com o hábito de sua Ordem. A Santíssima Virgem, também de hábito, sentada sobre um trono, presidia essa assembleia. Parecia que esperavam o Santo para começar as Matinas, porque logo que este entrou a Santíssima Virgem entoou a antífona, a qual foi continuada pelos Anjos com uma harmonia incomparável. E São Félix cantou com os Anjos. Quando a visão desapareceu, ficou em sua face extraordinário esplendor.

A Santíssima Virgem entoou a antífona

Que cena maravilhosa! Um convento com tanto fervor, onde se dá tal glória a Deus que, num dia, por um desígnio divino, um irmão esquece de soar Matinas e a Providência faz isso para operar uma maravilha maior!
Os Anjos vestidos de religiosos enchem as estalas do coro, Nossa Senhora, sentada num trono magnífico, entoa a antífona e todos os espíritos celestes cantam! São Félix de Valois chega ali e, em vez de se espantar e perder a cabeça, mistura o seu canto com o dos Anjos e da Santíssima Virgem!
Esse foi um ponto-ápice da vida desse príncipe, toda ela constante de uma série de fatos tão bonitos que davam para se fazer com eles um verdadeiro colar constituído de placas de esmalte, em que cada uma reproduzisse um desses episódios. Teríamos, assim, um dos mais belos colares da História, de tal maneira essa vida é maravilhosa.
Deparamo-nos, nesta narração, com o mistério da predestinação. Antes de o príncipe nascer, a Providência tinha resolvido fazer dele uma verdadeira maravilha. Donde aquele sonho admirável que sua mãe teve, no qual aparece o príncipe, o Menino Jesus e Nossa Senhora, e as relações que haveria entre o Divino Infante e São Félix são explicadas para a mãe.
Mais tarde vemo-lo como lutador, como grande guerreiro, e depois como religioso que renuncia a todas as coisas da Terra para se ocupar só com a Ordem religiosa. Afinal de contas, essa espécie de glorificação na Terra, que é a entrada de Maria Santíssima e dos Anjos no seu convento para junto com ele glorificarem a Deus.

 

O Reino de Maria será mil vezes mais esplendoroso

 

ria fazer uma iluminura ou um esmalte maravilhoso, constituindo-se uma biografia das mais bonitas que se possa conceber.
Em última análise, essa biografia significa o seguinte: a Idade Média dando muita glória a Nossa Senhora que, contente com essa era histórica, multiplica os prodígios para manifestar o quanto Ela estava satisfeita. Este é um desses gêneros de prodígios em série, feitos para exprimir a alegria de Maria Santíssima.
Devemos nos deter embevecidos na contemplação desses fatos, porque assim compreendemos o que é a misericórdia de Deus e de quantos esplendores a Civilização Cristã é capaz. Se esses episódios se passaram na Idade Média, que maravilhas veremos no Reino de Maria, o qual vai ser ainda superior àquela era histórica?
Assim, compreendemos que todo suor, sangue e lágrimas que vertemos atualmente para instaurar o Reino de Maria na Terra, estão muito bem recompensados. Quando contemplarmos essa época histórica vindoura e descobrirmos coisas ainda mais bonitas que as de outrora, e pensarmos que a Providência quis servir-Se de nós a fim de fazer cessar estes horrores contemporâneos para vir a era dessas maravilhas, então poderemos dizer, parafraseando Jó: “Bendito o dia que me viu nascer, benditas as estrelas que me viram pequenino, bendito o momento em que minha mãe disse: nasceu um homem!”
Realmente, cada um de nós poderá dizer isso, pois teremos, pela força de Nossa Senhora, derrubado toda a cidade da iniquidade e feito nascer o Reino de Maria, mil vezes mais esplendoroso do que esses esplendores que acabamos de considerar.v

(Extraído de conferências de 20/11/1964 e 19/11/1965)